Regra única, fundamentalismo e demagogia

Será ainda muito difícil objectivar a dramática tra­gédia humana dos incêndios que devastaram o País no ano passado. E por isso é muito cedo para, friamente e sem despertar emoções, se discorrer sobre as suas causas que, no entanto, algumas, têm uma acuidade muito visível. Sobretudo quando se desviam as atenções, e obrigações, para todos aqueles detentores de floresta que, sem terem sido afectados, poderão, potencialmente e numa generalização assaz discutível, estar em hipotéticas situações de os poderem provocar (não obstante serem os menos interessados na sua verificação, pelos prejuízos imediatos que daí lhes advirão).

 

Porém, uma primeira indolor, imediata, de sempre ou de brancas barbas quilométricas, pode desde já invocar-se por estar presa ao concreto geológico e climático do território (o de cada região e até de zonas desta) e às formas de ocupação humana que nele (e nelas) ocorria. A assim e porque aquele e estas são díspares, impor-se-iam dissemelhanças de regulamentação que se opõem a uma generalização absurda e pouco condicente com as diversas realidades de cada espaço.    

Nesta senda e pondo de parte as condicionantes naturais que são as que são (e levando sempre em conta as alterações que se creem estar a ocorrer), do apontado sobram-nos as fruições dos solos. E nestas, por uma questão de melhor conhecimento directo, vamos restringi-las ao entre Cávado, Douro e Sousa.

Por esses lados, com a chegada da modernidade e a transformação sofrida pela agricultura (acentuada na contemporaneidade e agravada pela globalização), a maior parte das parcelas agrícolas viu diminuída a sua rentabilidade e porventura deixou de ser economicamente viável, ou pelo menos permitir, aos que as fabricavam e a isso se dedicassem em exclusividade, meios financeiros capazes de lhes consentirem um nível de vida e consumo equiparáveis aos dos outros sectores económicos. Desde logo e como desde há muito se aponta, e se verifica por essa Europa fora que tem vindo a emparcelar (ou a encontrar outras formas de agremiação), pela pequena área e grande pulverização da propriedade (em que, na ausência duma rede de comercialização gerida no interesse dos produtores, a dimensão da produção de cada um não tem capacidade para integrar a procura e fica sujeita, quando muito, à local, ou, o que ainda é pior e mais comum, ao intermediário). Logo e como consequência directa dessa oferta individual diminuta, a uma forte redução no preço obtido, encolhendo, assim, réditos que já não seriam os mais satisfatórios. Fenómeno a que, entretanto e para compreensão da conclusão que se pretende tirar, há que aditar: o da introdução de maquinaria e alguma alteração na produção, que foram libertando braços; o da industrialização, carente de mão de obra e a consequente, e progressiva, atracção que exerceu naquela, com a concentração nos polos em que ocorria, ou nas áreas em que proliferava e a que mais recentemente se juntou o dos serviços; e o da emigração, intensificada a partir da década de sessenta do século passado (aliás e desde há muito, esses espaços, em regra de natalidade positiva, eram fonte de emigração; de lembrar aquela denúncia de Sá de Miranda, na Basto, onde o poeta verseja que Temo-me de Lisboa,/que ao cheiro desta canela,/o reino nos despovoa.).

Deste remediado esquisso de um conjunto de sinais factuais já se depreende que, ao longo dos anos, as terras menos produtivas foram sendo sucessivamente deixadas de cultivar e depois, mesmo, o abandono estendeu-se por espaços inteiros e o simultâneo mais recente algum, ou muito, menosprezo pela profissão de agricultor; o que foi afastando as faixas etárias mais novas (no notório de que, entretanto, o exercício da agricultura requer conhecimentos específicos, sejam eles provindos da prática, sejam leccionados). Num tudo de falta de braços que nem a alguma alteração das produções veio solucionar. Assim e na sequência, os montes (antes fornecedores de madeiras, resina, materiais combustíveis para uso doméstico e camas de animais - estas pronto transformadas em estrumes -) e aqueles terrenos mais pobres, de há anos e de uma maneira geral, deixaram de merecer cuidados agrícolas e foram sendo progressivamente desleixados, ao não te­rem acompanhado a transformação de uma agricultura pre­do­mi­nantemente de su­bsis­tência para uma de mercado.

De salientar, também, que na região sobre que recaem estas palavras, na generalidade, as manchas florestais contínuas estão muito disseminadas e muito poucas se estenderão por mais de mil hectares. Sendo que, portanto, as distâncias aos seus bordos nunca serão muito grandes; tanto mais que as áreas florestais se estendem normalmente por festos, encostas dos montes e apresentam-se estiradas e não, por conseguinte, nas zonas habitadas. Aliás, as aldeias encaixadas na floresta serão excepção, nas raríssimas que possa haver, sendo bastante mais vulgar, não a floresta ter-se aproximado das edificações, mas o inverso, ou até a sua intrusão nela (com evidente responsabilidade de quem tal autorizou). O tudo a prognosticar que dramas humanos com a dimensão dos do passado Verão e Outono, por aqui, não terão grande cabimento.

Nesta realidade, uma regulamentação única e extensível ao todo do território nacional não tem justificação. Sobretudo se, ainda por cima, for executada a esmo e por gente não preparada para a ler (interpretar na concepção técnico-jurídica: isto é, definir os interesses que a norma tutela, levando em conta o espartilho do texto, mas no bom senso da plenitude do ordenamento jurídico, dos concretos tempos em que foi legislada e em que é aplicada, suprindo-lhe inclusivamente omissões e criando analogias; saber que, evidentemente, não está ao alcance de qualquer e que, num exemplo que demonstra a ironia da comparação, anedoticamente, se pode equiparar a quando se estiver doente e se tiver de ir ao hospital, não se procure médico e contente-se com o primeiro trabalhador que encontrar, recepcionista inclusive, porque e como está lá, ele deve bastar para lhe resolver a maleita). Mas, o mal não se fica por aqui, pois com a eficiência e periocidade exigidas, além de um custo exorbitante, e mais que despropositado, para os proprietários, está-se mesmo a ver que, passada a actual erecção peniana matinal, é mais uma lei para encaixilhar e, por isso, os critérios para definir as áreas a incluir nos PMDFCIs devem ser cuidadosamente ponderados e, também, ter em atenção os seus efeitos na erosão, fauna selvagem e, até, na própria flora nativa espontânea. A que se deve juntar ainda um outro óbice pouco trazido à baila: o da possível inconstitucionalidade de algumas medidas restritivas, por afectarem o direito fundamental à propriedade e a consequente justa indemnização no caso de sua violação (o que, curiosamente, a lei só parcialmente salvaguarda).

Sem se poderem prolongar mais estas linhas e, como compete, olhando para cá, para este concelho, a solução, na senda de todas as preocupações ecológicas tão assiduamente manifestadas, parece apontar para a reintrodução duma agricultura florestal viável para a conjuntura que se atravessa e, para tanto, os organismos que tem vindo a ser criados e já estarão, ou deverão estar, no terreno, devem planear e orientar um novo modus faciendi, permissivo duma sustentada e desejável transformação dos nossos montes.

Quanto ao resto, haja bom senso!

Fundevila, 

11 de Abril de 2018

terça, 17 abril 2018 22:18 em Opinião

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