Contágio

As memórias são como as cerejas. Vê-se uma pessoa, um lugar ou uma coisa, ouve-se um som ou uma melodia, uma palavra ou uma frase, algo que seja captado pelos sentidos, e aí temos uma vertiginosa sucessão de lembranças encadeadas umas nas outras, que se fôssemos a relatá-las todas tal como nos aparecem no filme da memória e

estaríamos a fazer, com melhor ou pior cronologia, mais ou menos adequada agregação de ideias e de temas, o relato de toda uma vida, desde os alvores da consciência até ao exato momento que antecede aquele em que se está. Vamos aos factos:
Sexta-feira, 20 de março passado.

Bocejei e a minha neta (sete anos e meio), a meu lado, bocejou momentos depois e disse – quando alguém abre a boca ao pé de mim eu fico também com vontade de abrir a boca.
Esse dito atirou-me instantaneamente para acontecimento de minha juventude que adiante relatarei, e, naquela espécie de flash back cinematográfico, em que ocorre um ultrassónico salto no tempo através de não menos rápido movimento de imagem, acompanhado de um som misto de sopro e intenso silvo, que começa em tom agudo e termina num som grave que se extingue no exato momento em que o filme retoma o seu normal curso no novo tempo, daquele acontecimento voei para outro, deste para um terceiro e assim por diante até que, com um leve mas determinado abanar da cabeça desliguei a máquina de projetar memórias para me concentrar na condução: o meu bocejo e o dito da minha neta ocorreram estando eu a conduzir, com ela a meu lado, sem infringir a lei, pois a viatura era um minúsculo Smart de apenas dois lugares.
O que a pequenita disse levou-me a recordar um vimaranense meu conhecido, chamado Fernando mas cujo nome os amigos e conhecidos, quando a ele se referiam, acrescentavam a expressão “espanhol”, o “Fernando espanhol”, julgo que por ser de origem galega.
Vivia o Fernando em regime que presumo de adoção de facto com uma senhora, tia do meu primeiro amigo, cuja casa este me fazia frequentar, senhora aquela que não conheci senão por “Titi”, assim me referindo e dirigindo a ela, como se “Titi” fosse mesmo o seu nome. Morava no agora renovado largo de Donães.
O meu amigo vivia na rua de Santo António, no palacete de Minotes, que era o edifício em que se encontravam instalados os serviços postais de então, que, para construção de um paquiderme que servisse de nova casa do “Correio”, foi demolido juntamente com outos magníficos exemplares da arquitetura do século XIX, evocadores também eles de memórias sobre as quais salto – as malfadadas cerejas a tentarem estragar-me os planos – para me deter por instantes numa curiosa casa de apenas duas frentes, no largo traseiro ao mastodonte, ao lado da fonte medieval ali existente.
A casa, em fase final de restauro, está interessantíssima: cobertura em telha tradicional, fachadas em escamas de ardósia, janelas e caixilharia brancas quebrando o negrume dos alçados.
Detém-se aí o filme para dizer que no rés-do-chão desse edifício se confecionavam os gelados e chupas que, à porta dos estabelecimentos de ensino pós primário dos anos 50 e 60 do século passado, o Liceu e a Escola Industrial, eram vendidos por rapazes vestidos de branco, com boné ou bivaque da mesma cor, que empurravam a mercadoria acondicionada em carros de mão apropriados a manterem o frio. Os chupas eram espetados numa grande batata pousada no carro!
Devo assinalar a importância desta memória pelo facto de, no Liceu, que foi o estabelecimento que frequentei onde hoje é a sede da Câmara Municipal, a engraçadíssima disciplina de Religião e Moral ser sobraçada por um eclesiástico alto, desprovido de gorduras dispensáveis, sempre vestido de negro como todos os seus congéneres de formação e que, por essa ou qualquer outra razão, tendia a ver o mundo, rapaziada (devo, cautelarmente, acrescentar raparigada) incluída, como se tudo, mundo e população, se tratassem não de obra divina, mas sim de descendência das trevas.
Talvez por isso o padre nutria um ódio de morte aos gelados e aos chupas, que considerava uma “porcaria”, não porque engordassem (na altura sabia-se lá disso!) mas porque …sim!
Donde, sempre que no tempo quente, à hora da saída do Liceu, quando a miudagem acorria a comprar um gelado – chupas era raro comprarem-se – o padre, que, tal como estudantes, professores e empregados saía pela porta principal que dá para o largo fronteiro ao edifício, se conseguia aproximar-se de estudante que, sem atenção às redondezas, incautamente sorvia com deleite o seu gelado, quando este era levado à boca de quem o sorvia dava-lhe uma sapatada na mão, fazendo com que o gelado se esborrachasse contra a cara do ou da infeliz.
A humilhação e o desperdício do custo da guloseima faziam a revolta de quantos assistiam à cena, causa da malquerença que, não só por isso mas por muito mais, ao clérigo era generalizada e generosamente votada, de tal modo que raramente o seu nome era pronunciado sem uma qualquer adjetivação.
Bocejo, Titi, Correios - o antigo e o mastodonte, casa dos gelados, o prof. de Religião e Moral … os saltos que já demos antes de retornar à metáfora da cereja, no caso o Fernando dito Espanhol.
Pois este, que andaria então pelos 20 - 25 anos, pessoa bem disposta e com alma de ator, fez parte do elenco de um auto de Gil Vicente representado, já sob a égide do Dr Santos Simões, pelo que veio a tornar-se no Teatro de Ensaio Raúl Brandão, acolhido e acarinhado pelo vimaranense Círculo de Arte e Recreio (CAR), A personagem a o Fernando deu corpo, voz e alma era um homem humilde e mal vestido, falava o galaico-português reminiscente nos princípios do século XVI, o que o ator fazia com maestria dada a facilidade com que retornava à língua das suas origens. A personagem, caraterizada pela sua permanente indolência e preguiça era, na peça, o Preguiçoso.
Procurei identificar o auto mas, ignaro me confesso, não consegui apesar de várias buscas.
Sei, isso sim, que o espetáculo decorreu em tempo de verão, no centro do largo da Misericórdia (anteriormente largo João Franco) com a boca de cena voltada para a igreja que dá o nome à praça.
A plateia era constituída por grande e bem alinhada quantidade de cadeiras, todas tendo ficado ocupadas e, para além do público que as ocupou por completo, largas dezenas de pessoas assistiram ao espetáculo de pé.
O Preguiçoso teve uma atuação absolutamente convincente, indolentemente apoiado em tosco cajado, debitando a sua fala de modo lento e arrastado.
Mas melhor que isso eram os seus frequentes intensos e demorados bocejos.
Certo é que não tardou a que eu próprio sentisse vontade de bocejar, que apenas foi ultrapassada quando olhei à minha volta e reparei que enormíssimo número de espectadores igualmente bocejavam repetidamente, facto que despertou o meu sentido de humor e fez imaginar a cena posta em filme. Seria un gag perfeito
Tive dificuldade em manter bem domesticado o riso de que fui acometido e, não raro, ao passar pelo largo do acontecimento, recordo, divertido, o que acabo de relatar.
Prepare-se, portanto, quem esteja junto de quem boceje, pois o mais certo é que a necessidade de bocejar o ataque ferozmente.
Aliás, basta pensar no bocejo, como me aconteceu para este relato, e aí nos temos de boca aberta ou, diplomaticamente, disfarçando o ato, mantendo os lábios colados enquanto o queixo descai e os olhos se arregalam. Um tático coçar do lábio superior ajuda ao disfarce, quando as convenções o aconselham.
Resta-me agradecer à minha neta a contribuição para este evocativo escrito.

Guimarães, 03 abril de 2018
António Mota-Prego
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quarta, 04 abril 2018 00:42 em Opinião

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