Ter a mania

“Cada um de nós inevitável (...)/ Cada um de nós aqui tão divino como qualquer outro.”
Walt Withman. Folhas de ervas. 1855.
 
Maníaco é uma palavra terrível, diabólica direi mesmo. Já mania é uma palavra bonita, curta e elegante. No entanto o maníaco é, literalmente, aquele que tem a mania. Entre o adjetivo e o substantivo existe assim um fosso enorme de significado. Talvez à falta de um adjetivo intermédio e adequado os portugueses inventaram o “ter a mania” quando se referem a indivíduos vaidosos de uma qualquer característica pessoal. O armanso também serviria o propósito, mas nos meus dicionários não existe essa palavra, só mesmo no vocabulário popular nortenho. Em Guimarães certamente pois o armanso sobreviveu até hoje na nossa linguagem particular: o armanso é aquele que se está a armar (em bom).
Voltemos então à palavra mania, uma palavra com uma sonoridade agradável, que se prestava a ser nome de cadela fofinha ou, então, designação de uma dança latino-americana, hoje vou dar um pé de dança, é dia de mania, rumba e mambo, ou até de fruta tropical que combina bem numa salada com maracujá, ananás e ... mania. No entanto ter a mania é outra coisa. E nada irrita mais do que aturar pessoas que têm a mania.
Ter a mania de que se é bonita ou de que se é bonito é frequente. Irrita um bocadinho, mas não exaspera. Pois, como sabemos, é uma coisa que passa com o tempo e a assunção – pelos outros - desse cinismo pode ser particularmente tranquilizante. Ai tens essa mania? espera uns aninhos e vais ver onde vão parar essas carnes e esses ossos que tu, pobre tonta, julgas hoje poderem escapar à persistente teimosia da gravidade. Ter a mania de que se é inteligente é bem mais grave. Ora vocês não sabem mas isto é assim, já não irrita, exaspera. Ter a mania de que se é inteligente não é de pessoa inteligente. A inteligência não se propala, descobre-se ... e no fundo a beleza, apesar de característica física, também funciona um pouco assim. Ter a mania de que se é inteligente é, paradoxalmente, a mais estúpida das manias. Só um pascácio (outra interessante palavra que sempre ouvi dos meus amigos da Póvoa de Varzim) se deixa impressionar por aqueles que têm a mania que são inteligentes. O resto da malta fica logo de sobreaviso e quem tem a mania de que é inteligente sai logo a perder. Ter a mania de que se é rico está, por graça e obra da fiscalidade, a perder força. No tempo em que os impostos eram uma abstração a mania de que se era rico era bem mais frequente. Atualmente a coisa está mais contida. Os carros e as casas ainda são um sinal disso mesmo, mas disfarçam-se mais. Resta-nos o vinho caríssimo a que um pascácio qualquer explica pormenorizadamente o preço e a proveniência, ou o relógio incrustado de pedras que tem os mesmos ponteiros que o nosso e dá exatamente as mesmas horas que a nossa cebola. Este é o mundo das marcas que tanto consome, desde cedo, e escusadamente, os nossos adolescentes. Já ter a mania de que se é de família está nitidamente a ganhar força, pois a época que vivemos é de intensa normalização e nada poderá ser mais distintivo do que falar das origens. Já que nem todos podemos ser de Bettencourt e Albergaria o ter a mania que se é de família exige, desde logo, um bom sobrenome. Eu, coitado, nem que quisera inventar um passado de família estava tramado: o Costa é como uma âncora que me afunda na cruel realidade da onomástica. O Poeiras e até mesmo o Lobo poderiam, quiçá, fazer-me flutuar no mundo cruel dos apelidos, mas ficaram entalados entre os nomes próprios e a vulgaridade do Costa (valha-me por agora o primeiroministro!). Os que têm a mania que são de família adoram falar entre eles. Têm um jargão próprio impermeável aos Costas, aos Silvas, aos Pereiras. E é o que nos vale senão teríamos que gramar umas horas a (ouvirmos) falar das joias da avó Ricardina ou das práticas lá de casa ou das impertinências do pessoal doméstico ou dos cavalos das toiradas ou das quintas ou do Dom Pedro qualquer coisa.
Quando escrevia mentalmente esta crónica passei por um desses sítios em que - como um jornal de parede – se alinham necrologias. O túnel da Gil Vicente é um dos mais populares e quando passava – escrevendo – dou com uma boa meia dúzia de transeuntes perscrutando novos mortos ou missas de aniversário, ou de mês, ou de sétimo dia. Desviei o olhar não fosse alguém pensar que, também eu quanto eles, tinha (afinal) a mania de estar vivo. Nunca confiando.
 
Rui Vítor Costa

terça, 10 abril 2018 22:20 em Opinião

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