Os penetras

“Quando a caravana se pôs em marcha, segui-a até à estrada. (...) Não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante.” 

José Saramago. A viagem do elefante. 2008.

 

Há histórias que melhoram com o tempo. Muitas das minhas história de juventude, à força de tantas vezes serem contadas e partilhadas, vão ganhando hoje ressonâncias sempre novas. Penso que isso se passará com muitos de nós. Há sempre um pormenor que se acrescenta à história, não sei se por um capricho de memória ou pura e simplesmente pelas nuances que, muitas vezes, a imaginação acrescenta à realidade. No início dos (gloriosos) anos 80 acontecia – não sei se apenas em Guimarães, mas em Guimarães certamente – o hábito de ir a festas para as quais não se era convidado era das coisas mais excitantes que se podiam fazer. Foi (para mim) um breve e louco período entre os meus 16 e 18 anos e funcionava por paradoxo: quando alguém nos convidava para uma festa de anos era um desprazer, quando alguém se atrevia a não nos convidar, aí sim, era o desafio pelo qual ansiosamente esperávamos.

Penetrar nas festas não era – apesar daquilo que a idade poderia indiciar – uma aventura sem plano, não. Penetrar significava ter uma estratégia bem delineada e um calendário bem estruturado. Tudo começava pelo bufo. Existia alguém no grupo de amigos que era convidado e que funcionava como Cavalo de Tróia. O pessoal escolhia a hora do assalto e o modus operandi que, geralmente, passava pela boleia de amigos um pouco mais velhos que nós, mas já com carta e carro e a lata suficiente na arte do penetrar. Apesar de tudo entrava-se em bando, pois muitas vezes as coisas podiam correr mal e um grupo ... é sempre um grupo. O bufo era sempre denunciado pois depois do 14º croquete e de 5 cervejas era com ele que desabridamente se socializava. O bufo tinha a festa estragada e os olhares dos convidados inevitavelmente sobre ele, ou alinhava na deriva alcoólica (perdido por cem, pedido por mil) ou então recolhia a um canto sob o peso dos olhares reprovadores.
Lembro-me ter combinado com um grupo de amigos quando estudava no Porto, no meu 12ºano, penetrar numa festa em Vizela de uma rapariga que fazia anos. Ainda hoje me pergunto como era possível combinar alguma coisa à falta de telemóveis, mas combinavam-se coisas. Incrível! Era uma sexta-feira à noite e eu cheguei tarde do Porto e já não apanhei os meus amigos. No tempo em que não havia telemóveis assumiam-se as coisas, não está não está, vamos nós andando. Restava-me apanhar a última camioneta da Transcovizela, caso alguma coisa corresse mal teria que fazer Power Walking no regresso. E lá fui eu. Entrei já os meus amigos penetras e o bufo dançavam num anexo da casa preparado para o efeito. Ela deitou-me um olhar furioso do tipo: outro, quando é que isto vai acabar? E lá fui eu dando uns passos de dança ao som de September dos Earth, Wind & Fire até que um adulto que eu conhecia – e que se divertia com outros adultos numa festa paralela – me resgatou aos croquetes e me pôs a comer e a beber coisas muito mais interessantes do que aquelas que se disponibilizavam no anexo. Ser penetra era também isso, era estar preparado para mudar a agulha se isso nos garantisse maior tempo de permanência na festa para a qual ninguém nos convidou.

A coisa terminou por aí, 1981, 1982, mas o bichinho ficou. Em Coimbra subi o nível da penetração e fui a dois casamentos sem ser convidado. Num deles de gente que hoje conheço vivamente pelo facto de ter penetrado no seu casamento. Boa gente claro, que quando me veem hoje me chamam de penetra, nem sei bem porquê. Noutro não conhecia ninguém tirando o convidado que me levou. Foi na Mealhada e acabei a festa a dançar com a noiva. Os casamentos tinham o dom de matar o vício de penetrar e (ainda) o de poupar o almoço e jantar de domingo ... e (quem sabe) até mesmo o almoço de segunda feira. Foi durante a segunda intervenção do FMI em Portugal, compreende-se.
Já depois de casado (ainda de fresco) um grupo de amigos meus – que estavam em minha casa – decidiu penetrar numa festa em frente. Eu não fui pois era uma festa dos meus vizinhos e há que pugnar por uma boa vizinhança. No entanto estive solidário e recebi-os condignamente depois da inevitável expulsão, pois já tinham passado mais de dez anos sobre a época áurea dos penetras. E a arte perde-se.

Quando D. Manuel I quis impressionar o papa Leão X enviou uma delegação a Roma, chefiada por Tristão da Cunha, que partiu de Lisboa levando pedras, joias e animais exóticos como elefantes, leopardos, e um rinoceronte que (imaginem lá a desfaçatez do bicho) morreu no trajeto. A delegação chegou a Roma a 12 de março de 1514 e foi recebida uns dias depois pelo Papa que de tão impressionado com o gesto diplomático decretou que os portugueses poderiam entrar em qualquer uma das festas romanas. É o que se diz. Outra versão atira para o séc.XVIII e para os espetáculos organizadas pela embaixada de Portugal em Roma, nas quais os portugueses podiam assistir de borla, bastando para isso que, à entrada, referissem io sono portoghese. A expressão ficou e hoje em Itália fare il portoghese é entrar num sítio para o qual não se pagou, para o qual não se foi convidado. Mas fare il portoghese sendo portoghese é estar num outro nível: a estratosfera da penetração.

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