Holocausto florestal

Uma espécie sui generis de histeria colectiva abateu-se sobre este rectângulo atlântico da península ibérica que é o nosso País.
Aliás fortemente incitada por uma comunicação social apostada, à exaustão, na exploração sensacionalista de eventos; maioritariamente de desgraças e sempre mediante o recurso direccionado emocionalmente a instintos primários. Excitação assim ampliada que, quando convém, é logo aproveitada, se não mesmo sugerida e fomentada, por os que, para tirar o cavalo da chuva, isto é, furtar o rabo à seringa, tentam desviar atenções e, claro, inventar responsáveis causadores dos acontecimentos nefastos; responsáveis que, entretanto e as mais das vezes não o são realmente, ou até em nada o são.
Mas é este o País que corre.
Ora os incêndios florestais, que é isso que aqui se vai tentar aflorar, foram e têm sido um repasto suculento e fácil de servir a todas as mesas; não obstante a sua inevitabilidade regular e de certa maneira natural (embora e ainda que muitíssimo agravada por a actividade humana). E tudo numa visão una de um Pais cujas características, de norte a sul, são distintas: quer geológicas, quer orográficas, quer climatológicas. E se nos detivéssemos nalgumas das especialidades que, grosso modo, podem estar compreendidas naquelas disciplinas (p. ex. : qualidade dos solos, altimetria, pluviosidade, regime de ventos, micro climas, etc, etc.), sem postergar a importância da divisão dominial da propriedade rural e formas de sua exploração, então, as disparidades acentuar-se-iam e, por conseguinte, não aconselhariam uma qualquer homogeneização regulamentadora de ineficiente defesa da floresta contra incêndios (DFCI). Mas foi o que aconteceu, ou vem acontecendo há muitos anos, sem, inclusivamente, se atender à realidade incendiária que nos tem acometido e daí tirar ilações (no entanto, recentemente, bem patenteadas no relatório da Comissão Técnica Independente para os incêndios de Pedrogão Grande e Góis; que, ainda que publicado na integra, tem merecido uma atenção mais que displicente).
Entretanto e como primeiro reparo genérico convém dizer que, de há tempos a esta parte, paulatinamente, o legislador tem deixado de o ser e à boa maneira anglo-saxónica (imbuído no pragmatismo do tio Sam a que tudo se está a sujeitar), enveredou por uma onda regulamentadora. Regulamenta-se tout court! Ademais alicerçado numa espécie de dicotomia simplicista do não pode e do pode, num paralelo com o absoluto (a tal praxis omnipresente da via única  - TINA) do que é o mal e do que deve ser o bem; mas sempre repressora no primeiro, como a só forma de defender o pretenso interesse colectivo que, entretanto e os jurisconsultos ensinavam-no exaustivamente, tem as suas relatividades atendíveis de acordo com o senso jurídico e o até reductio ad absurdum. São estes, porém, os frutos do tempo e duma globalização devidamente subordinada a interesses afanosamente escamoteados.
Dito isto que já faz parte do nosso quotidiano de subversão de valores que nos eram tradicionais, que integravam a nossa cultura europeia (continental e milenar), é evidente que: há incendiários, por índole doentia ou imputáveis por os mais dispares motivos; há muita floresta (na recente terminologia legal e que aqui é a usada desde o título) abandonada e que, por assim dizer, se selvagenisou; há um excesso de mono culturas arbóreas de espécies altamente inflamáveis contíguas, sem espaços limpos que dificultem a propagação do fogo e facilitem o seu ataque; há, há e há um rol imenso de lamentações ao gosto de quem as queira utilizar. Dentro dessa faculdade ajuntemos lhe mais uma, a que se segue.
É que o problema da floresta não é novo. E até já o Mestre Aquilino retrata uma sua faceta, lá pelos anos quarenta do século passado, quando põe os lobos a uivar. É, somos um espaço, mormente a norte do maciço central, de povoamento antigo e com formas de exploração agrícola em que todos os terrenos eram aproveitados nas valências do que podiam produzir (ainda há quarenta ou cinquenta anos a GNR guardava os montes daqueles que, por necessidade, iam buscar-lhe os desperdícios: fitas dos eucaliptos, pinhas, ramos secos, caruma e um que outro pinheiro abatido à surrelfa; numa conduta então tida como ilegal e que dava castigo). Tudo numa economia de subsistência, de, digamos, autarcia. Actividade agrícola que por meados do século XIX ainda era circunstancialmente rentável (leia-se Júlio Dinis e, nomeadamente, Os Fidalgos da Casa Mourisca) neste nordeste minhoto, único sobre que recairá esta reflexão. Depois foi decaindo a ponto de, já por meados do século passado, se ouvir sentenciar com frequência que ter uma quinta era como manter uma amante muito cara. E a evolução prosseguiu porque a economia se alterou e o liberalismo, a culminância mercado, estimulou novas formas de produção que, progressivamente, foram aniquilando as duras, e muito pouco rentáveis, que  dominavam aquele sector do primário; aquele modo arcaico de fazer rural. Ainda que ele no passado se tivesse mostrado adaptado às condições então ocorrentes, tanto físicas como de partição das terras. Mas, como diz Gedeão, o mundo pula e avança ... . E a revolução industrial, o desenvolvimento dos sectores secundário e terciário, a par de um inerente urbanismo explosivo, novas condições de vida e consumos muitíssimo acrescidos, foram criando emprego e mais emprego, direitos de trabalho e retribuições cada vez menos compatíveis com as praticadas naquela fóssil agricultura. Agricultura essa que, por sua vez, também e por várias razões (muitas delas objectivas), também não acedeu a uma modernização exequível. Fora, claro, a plantação de cimento (ruralmente nociva, não só pela diminuição da superfície que lhe estava votada, como pelos parcelamentos que provocou e, muitas vezes, isolamentos, ou, ainda, pela redução das potencialidades rentáveis pela circunscrição das áreas que a dispersão, e proximidades, causam). Num, assim, conjunto amplíssimo de circunstâncias que foram determinando o abandono das explorações. Tudo isto porque, atempadamente, ninguém se debruçou sobre uma política agrícola coerente, sustentável e que, devidamente apoiada num sector comercial que servisse os seus interesses, tivesse capacidade para intervir no mercado e fosse susceptível de, sucessivamente, ir implementando um cada vez maior valor acrescentado às respectivas produções. Política que, pela diversidade apontada e para sobreviver, teria que ter sido definida, e gerida, regionalmente (ainda há quem se lembre do Cachão?). Mas como ainda não existem as regiões, como não há políticas agrícolas, os remedeios são o que são e não venham agora querer culpar a floresta, os nossos montes, de males que não são imputáveis senão aos que a destruíram por omissão, ao não criarem directivas capazes, e apoiadas, para uma sua eficaz integração económica. E enquanto isso não suceder, enquanto, no mínimo, essa possibilidade de auto manutenção não acontecer, o problema subsistirá e agravar-se-á (ou não, porque o fogo já queimou muito). Ou alguém pensará que florestas de meia dúzia de hectares geridas como a regulamentação exige, ou por aí, são rentáveis? Só mesmo, talvez, eucaliptos e nisso residirá a sua proliferação.
Mais uma vez, portanto, se recordam as 282 páginas do relatório da Comissão Técnica Independente; as razões principais que aponta (conhecimento; qualificação; governança), as recomendações e propostas que faz. E simultaneamente aquela expressão de cair em saco roto. É, quando não quadra ...
Para fechar, porque a ladainha já excedeu os limites, só atentar que, não obstante o se saber da impossibilidade capaz de execução das limpezas impostas, das muitas informações da sua não ocorrência (ainda por altura do incêndio de Monchique o Público noticiava que só 1/3 das rede viária algarvia estaria limpo), do que se vê por aí, surpreende o reduzido número de contraordenações publicitado; o que faz crer que não é tanto a fiscalização, que tem sido sensata, como a delação (motivada por razões que não as do interesse público) que lhe poderão estar na origem. Num regresso execrável a velhas (do Santo Ofício aos bufos do tempo da outra senhora) práticas em florescimento.
 
Óscar Jordão Pires
Fundevila, 12 de Setembro de 2018
 

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