Infarmed sim, Infarmed não

Não há presente sem passado.
Tal qual a vida de cada um, a sociedade também consiste num processo que se arrasta à superfície do planeta há milhares de anos; centenas de milhares mesmo. E o que somos hoje, todos os humanos, é o resultado em movimento desse caminhar e das diversidades que entre nós se foram gerando. Ora, como será de fácil compreensão, a menorização que, por vezes, se faz do deixado para trás e, pior, o seu desconhecimento, pode não permitir uma leitura coerente da actualidade, desirmanando-a da sucessão que é e provocando a tendência para isolamento dos acontecimentos, como se, muitas vezes e na evidente diferenciação de circunstâncias, as suas causas remotas não proviessem de embriões que viram a luz nesses idos tempos.
Assim sendo, por a segunda vez em curto prazo e repetição seguida, chama-se à colação o médico Joaquim Guilherme Gomes Coelho e o seu romance A Morgadinha dos Canaviais (detestado por gerações para as quais, tal qual os Lusíadas, foi de leitura e análise obrigatória). Aí escreveu Júlio Dinis, retratando o pai da morgadinha, o conselheiro Manuel Bernardo, como homem respeitado, probo e bom chefe de família, ainda que, no seu múnus de político, passasse a maior parte do ano em Lisboa. Só que, numa sociedade aldeã recheada de caudilhos de faca e alguidar, cobres trazidos dos brasis ou patrimónios mais abonados, o espírito que predominava era do chapéu estendido, o do favor de Lisboa, mesmo no que era devido e que, no entanto, lá era decidido; ainda que mais que justo e, sempre, também, tendo em conta as mesquinhices da politiquice caseira. E da dita obra o que nos interessa aqui é a quadro do centralismo nela desenhado e que já ocorria pelos meados do século XIX. E, isto, não obstante os ventos da revolução francesa já terem alcançado o País muito antes, das reformas de Mouzinho da Silveira e da divisão administrativa que aquele promoveu.
 Ora a coisa, muitos anos andados, não mudou muito. E a ditadura, por razões intrínsecas à sua própria ideologia, reforçou esse peso. Inclusivamente por condições inerentes à própria evolução social. Da, nela, especialização do trabalho e necessidades crescentes de acorrer a um estimulado desenvolvimento de consumos, num fenómeno que se acentuou progressivamente a partir do fim da 2º Grande Guerra. Assim, os Serviços Públicos foram-se ampliando, ampliando e embora capi­la­rizados pelas capitais de distrito e quase nada pelas províncias, foram-se sobretudo concentrando na capital, gerando um aparelho administrativo central que não cessou de engordar, forçando, ao mesmo tempo, as grandes empresas a uma proximidade residencial, o que motivou sediações que muito mais foram aumentando aquela importância central; o tudo atraindo e fixando cada vez mais pessoas em busca de melhor trabalho e remunerações. É certo que, já próximo do final da ditadura, pelos fins da década de 60 e já no início da de 70, o planeamento regional, com atrasos inconcebíveis para o resto da Europa, começou a ser tido em consideração e nasceram as primeiras Comissões a isso destinadas. Depois CCR e posteriormente CCDR; mas sempre órgãos desconcentrados (actualmente papagueia-se como descentralizados, mas ambas palavras usadas para tentar, com alguns laivos de intervenção de agentes da área e representantes do poder local, conferir uma aparente legitimidade democrática ao que nada tem dela). E, frontalmente, fere a Constituição nos seus princípios fundamentais e na delineação estatuída para o Poder Local (que é semelhante a muito do que ocorre por essa Europa fora e decalcado do sueco, que tão bons resultados deu naquele País).
Mas isso são águas passadas, porque, logo em 1989, as regiões admi­nis­trativas tidas como regiões-plano, além de lhe retirarem essa primordial característica, introduziram-lhe requisitos que tornaram praticamente inviável a sua implementação; impondo uma espécie de nó cego àquilo que, no entanto, se­ria a concretização da contemporaneidade admi­nistrativa democrática e o definitivo enterro de todo o anterior sistema arcaico que persistia.
Nisso estamos, num, por conseguinte, enveredar por enviesados caminhos, aplaudidos por o aparelho (aparelho que sem qualquer menosprezo - por fruto das apontadas circunstâncias, e outras, que o engendraram -, como se verá, passará a ser designado por o monstro) e os que, numa efemeridade mais ou menos perdurável, mas sempre muito efémera, tentam levar a carta a Garcia, com eventuais pro­veitos financeiros para um bolo que determinam (ou já nem tanto, porque a UE também tem palavra a dizer) e em que cortam as fatias segundo conveniências políticas conjunturais.
Assim, na intolerável falta de uma progressista regionalização (ao jeito do quase universal modelo europeu), deita-se areia para os olhos do Zé com a tal desconcentração/descentralização. E claro, se é favorável que a atribuição e as competências estejam mais chegadas aos que por elas vão ser servidos, se isso é democraticamente louvável, há que atentar nas circunstâncias concretas das diversidades desses seus destinatários, das suas capacidades para essas novas funções e, também, das disparidades que o exercício delas possam causar, mormente acentuando de­sigualdades entre os cidadãos (sempre sem esquecer que, sem farinha não se faz pão, princípio que as leis e os orçamentos muitas vezes fazem intencionalmente por ignorar). A que há ainda que adicionar, porque o País não pode ser uma manta de retalhos inconsistentes, uma coerente coordenação (e que, essa, por estes enviesados percursos, continuará em Lisboa). Mas, para a frente, que esta matéria da regionalização é um quase tabu. O que, aliás e parcialmente, se compreende.
Como, nesse aspecto, se entende a resistência que engendrou o travão cons­titucional e o das for­ças que para tal se movimentaram .
É que o monstro tem muito peso. Muito mesmo!
Mas, convenhamos e de certa maneira, um peso justo.
É que não se podem tratar as pessoas, as famílias, como meros números. Não se podem pegar nuns milhares daquelas, destas e deslocalizá-los num só, e mesmo, ápice.
Excluindo essa situação que tem de ser acautelada e pondo de parte questões técnicas, de logística e afins, que as há, mas negligenciando definitivamente um poder que não quer, e custa a, abdicar de o ser, parece que se deve perceber que, decorridos mais de quarenta anos, o problema tem que ser, sem mais adiamentos, encarado de frente, devidamente delineado e discutido como a democracia o impõe. Mas sem mais atrasos, ou formas esdrúxulas de se o escamotear, ou induzir a tomar a nuvem por Juno. É que a regionalização é a legitimação directa dos interesses das populações das respectivas áreas, que e como é evidente, podem não ser, e normalmente não o são, as de outras do País. E são esses interesses locais e próprios que carecem de expressão autónoma, de quem, por sufrágio, os defenda; sem prejuízo de patamares superiores que, por mais abrangentes, os compatibilizem segundo regras e hierarquias bem definidas e sempre dentro dos princípios constitucionais da “igualdade real entre os portugueses”, no “desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional” e na “justa repartição individual e regional do produto nacional”.
O que, neste particular da administração pública e tirando os municípios (na perspectiva prosseguida do planeamento), nunca ainda aconteceu quanto à institucionalização das regiões; normais sobre modelos diversos e já se­culares por essa Europa além.
Ora, quando se fala tanta de europeísmo e Europa ...
Porque se lhe não segue o exemplo?
 
Óscar Jordão Pires
Fundevila, 11 de Outubro de 2018

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