45 minutos

Desde 09 de janeiro de 2006, data em que a Parca da roca e do fuso suspendeu a fiação da li-nha que para mim tecia mas, porventura porque a mana da tesoura estivesse a afiar o instrumento do corte, resolveu continuar, assim me ficando delas, Parcas, apenas o susto, e a recomendação, por quem se dedica a esticar o mais possível a linha que para cada um dos vivos elas tecem, de diariamente dedicar cerca de quarenta e cinco minutos da minha poupada vida a caminhar em passo de quem não quer chegar atrasado ao destino, que é precisamente o minuto 45 a contar daquele em que tiver partido.

É assim que, o mais diariamente possível, se assim me é lícito dizer, calcorreio com a condizente frequência as ruas desta encantadora e surpreendente cidade que é o Largo da Oliveira e tudo quanto lhe está à volta – pessoas, ruas e casas, na dimensão e extensão que a cada um mais apraz.
Enquanto ando vou colhendo as vistas que se me deparam, lojas que abrem, lojas que fecham para logo de seguida reabrirem, com a mesma ou outra mercadoria, velhas casas mortas que renascem como novas, bem como, já muito menos do que foi mas ainda algo mais do que eu gostaria de ver, casas que, tendo sido novas, saudáveis e vivinhas da silva, se mostram sem alma por dentro e gravemente enfermas por fora, se bem que de mal com cura, ape-nas à espera de que se lhes ministre a mezinha adequada.
E vou vendo as pessoas, sangue que no seu citadino curso faz da urbe aquilo que, fosse ela uma rapariga, permitiria que dela se dissesse que, além de simpática, era irresistivelmente se-xy.
Refira-se, porem, que, mesmo não sendo rapariga tem, de simpatia e lindeza, atratividade quanto baste para deixar pelo beiço quem quer que, independentemente da cor, credo, raça ou género, com olhos de ver a olhe.
Contar-lhes-ei, se para o meu conto estiverem pelos ajustes, o que se me foi deparando e o que fui sentindo numa das minhas mais recentes deambulações que, sendo remédio, é como aqueles xaropes que fazem a canalha ansiar por dor de garganta só para terem que os tomar.
Parti de bem perto da rua de Santa Maria e, logo ao tê-la inteira ao alcance da vista, depara-se-me, caminhando como se de simples passan-tes se tratasse, um casal de noivos, sem uma só alma de comitiva, ele impe-cavelmente ataviado, desde o verniz dos sapatos ao gel do cabelo, passando pela lista da calça, pela faixa na cintura, pelo casaco de botões forrados e bandas de seda, pela camisa de peito plissado e colarinho quebrado e engomado, re-matando com farfalhudo laço ao pescoço. Isto o noivo.
A noiva (o parágrafo é aqui bem merecido), com o cabelo ornado apenas de uma ti-ara de flor de laranjeira, cobria-se, até à cintura, com vestido sem manga e bem cavado sobre os ombros, profusamente bordado e com generosíssimo decote posterior, sendo o demais constituído por saia de se-da ou tecido de idêntico efeito (sou fraco em panos, mesmo os quentes …), bem justa à cintura e nos trinta centímetros imediatamente abaixo dela, todo o resto em godé até ao chão, crescendo em tamanho para a parte da cauda (do vestido, não era preciso dizer mas mes-mo assim ficou dito) que arrastava pelo pavimento uns bons dois metros, a passar.
Exceto a camisa, que era cor de pérola, todo o mais ornamento do noivo era absolutamente negro e, na noiva, tirando o intenso moreno da tez e da sua restante anatomia visível, primava a mais absoluta alvura.
Pareceu-me que uma senhora madura, ao passar por mim dizia para quem a acompanhava – A noivas dantes vestiam-se de branco, em sinal de pureza; agora é em sinal de felicidade. Do noivo, não falou.
Hora de razoável movimento, o mais curioso foi que, afora o dito que acabo de referir, se efetivamente dito foi, praticamente nin-guém demonstrou qualquer atitude de curiosidade ou estranheza pelo insólito de um par de noivos por ali andar, em turístico pas-seio, como se de casados já trouxessem muitas luas (em se tratando de noivos é por luas, e não por sóis que entendo dever contar-lhes os dias).
O que senti, realmente, foi que, já habituados os vimaranenses a vários tipos de insólito, entre ir ali a noiva e o noivo, e ir eu, não houve, salvo seja e com o devido respeito, qualquer diferença.
Admirados, sim, se mostraram os noivos, ao cruzarem-se com um grupo de militares de camuflado (dia do Exército), a quem demoradamente, e sem qualquer retribuição, olharam, enquanto os demais transeuntes deram aos defensores da Pátria tratamento idêntico ao que aos noivos foi dado: como quem olha uma banalidade!
Passado o Largo da Oliveira e o seu habitual formigueiro humano entrei na cada vez menos velha rua Nova.
Junto às “alminhas”, na viela que delas dá para o largo do Ourado, que tendo já sido famoso não tardará, por diversas razões, a voltar a sê-lo, um homem solitário, rudemente vestido, olhava como sem ver para as mãos abertas sob os olhos, enquanto um outro, frente às dita “alminhas”, bem arranjado, corpo ereto, cabeça respeitosamente inclinada, olhos fechados e mãos com os dedos entrelaçados bem junto ao queixo, movimentava discretamente os lábios que, logo cerrou e, enquanto voltava para o alto cabeça e olhos entretanto abertos lentamente, demorada e solenemente se benzeu; três vezes.
Nessa rua, no 57 (o número real é outro, que por respeito omito), vive um senhor de quem, sem ele saber, sou amigo. Tem nome mas, pelo dito respeito, chamar-lhe-ei Jerónimo, nome que não é o dele.
Magrinho, cor desmaiada, rugas vincadas, chapéu de aba curta erguida atrás, frequentemente o vejo sentado à porta de casa, pescoço como que enterrado entre os ombros e joelhos ossudos a quererem furar-lhe as calças, ao ver-me passar sempre me chama com uma só palavra – Amigo! e, com um simples gesto e sorriso nos lábios a que leva dois dedos, o indicador e o médio, me pede um cigarro, ao que sempre lhe respondi, com pena mas com a verdade - Não fumo. A conversa termina com ele a levantar a mão direita, esticada para o alto, não sei se em gesto de agradeci-mento, de despedida ou, o mais natural, de ambas as coisas.
Resolvi passar a andar com um maço de cigarros no bolso para lhe oferecer da vez seguinte que a petição me fosse feita. Chegada ela, há já algum tempo, abeirei-me dele e, dizendo ser um presente, ofereci-lhe o maço de ciga-rros. Agradeceu-me sem exuberância mas com o sorriso e o olhar absoluta-mente condizentes com não pequeno reconhecimento.
Nesse dia dos noivos, dos soldados, da mulher madu-ra, do solitário e do cristão, dia que é aquele em que vamos, lá estava o Sr Jeró-nimo que repetiu, tim-tim por tim-tim, o gesto de rogo de um cigarro. Dirigi-me a ele e, enquanto lhe relem-brava não ser fumador, disse-lhe que, apesar disso, havia dias lhe tinha ofere-cido um maço de cigarros. Porque me olhava com ar algo vazio, perguntei-lhe se se lembrava do facto, e respondeu sinceramente que não. Percebi tudo! Mas vou comprar outro maço para lho dar quando voltar a vê-lo.
No Toural, para onde prossegui, um turista habilidosamente empolei-rado sobre a varanda da discórdia, fotografava a árvore do monte Cavalinho, sob a qual, vai para cerca de um século, se trocaram juras de amor que foram o condimento que lhe preservou a existência até hoje.
Ao cimo da Porta da Vila, por onde depois rumei, uma guia turística precisava que aquela escultura de mármore é um D. Afonso Henriques moderno, cujos olhos vêm tanto para a frente, onde se acoita a moirama que havia que combater, como para trás, donde o primo Afonso VII sempre estava pronto para acometer o novel reino de Portugal. Já sabia mas fui confirmar: lá estão os dois olhos da parte de trás.
No largo da Oliveira vi os turistas sofrerem repentino susto com a surpreendente, demorada e altissonante chamada, a primeira das três que são feitas, pelo sino da Igreja, à missa das sete, para, momentos depois, vê-los manifestar espantada surpresa, entre ahhh! risos e ohhh!, quando, como que por milagre, se acenderam as luzinhas que natalicia-mente, ainda que durante todas as noites do ano, acen-tuam o rebordo das janelas do casario.
Nesse momento completei os tais 45 minutos de vida andante que preciso e gosto de cumprir.
 
Guimarães, 30 de outubro de 2018 
António Mota-Prego
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