Espírito natalício

“As primeiras vivências são, na sua maior parte, inacessíveis. Histórias recontadas, recordações de recordações, reconstituições que assentam na erupção súbita de um estado de espírito”
Tomas Tranströmer. As minhas lembranças observam-me. 2012.
O espírito de Natal é regular como as estações. De repente toda a gente fica mais simpática e disponível para perder tempo com os outros. O espírito de Natal é das hipocrisias que eu mais estimo, é uma espécie de bonança artificial que, por mim, será sempre bem-vinda. Gosto do Natal desde pequenino. Gosto dos seus exageros, das montras, e do filme “Do céu caiu uma estrela” do Frank Capra visionado pela enésima vez numa sessão da tarde. Gosto do ócio obrigatório e da família reunida iludindo as ausências que ganham gradualmente mais peso à medida que vamos envelhecendo. Gosto das rabanadas e do bacalhau, esse “peixe” das águas do norte que se implantou em nós como um chip que não dá para tirar mais.
Na verdade todo o processo do Natal tornou-se bem mais complicado e exigente do que era há uns anos atrás. Em muitas famílias - na minha certamente- quem recebia presentes eram apenas as crianças. Não sei se por falta de crianças ou por generalização do consumo, ou pelas duas, os presentes alargaram-se a todos. O que leva a que a compra dos presentes de Natal se tenha tornado progressivamente, e paradoxalmente, um inferno. Mesmo eu, a quem não são acometidas tarefas particularmente complexas neste domínio, fico nervoso quando vou comprar os presentes que fiquei – na precisa escala familiar - de comprar. Temo, um dia, passar a consoada com outros automobilistas no tráfego de Natal ou numa fila à espera de pagar um retardatário presente. E isso irrita-me.
E antes que o Natal venha com a sua manta de tolerância abafar-me a irritação gostava de desabafar sobre coisas que me incomodam de forma particular: a) na minha cidade há um conjunto de funcionários de uma empresa municipal que utilizam bufadores das folhas de outono sem parcimónia nenhuma, constantemente. Um destes sábados fui falar com um deles que rasgava com violência o silêncio daquele dia, às 7h30 da manhã, questioná-lo do porquê daquela tarefa àquelas horas. E envergonhei-me de o ter feito pois não era certamente aquele funcionário o autor da luminária ideia. Alguém no silêncio quente de um qualquer gabinete dera a perversa e antecipada ordem, certamente convencido que a madrugada tira peso às folhas, quem sabe; b) na minha cidade as luzes de Natal nos edifícios já cá estão desde o Natal anterior. Teimosas. Com uma cidade tão bonita como a minha usar base e eyeliner todos os dias era escusado, e deveria guardar-se para ocasiões especiais ... como o Natal; c) esta moderna obsessão pelos animais e pelos seus direitos começa a tornar-se irracional. Olhei este ano para os bois do Pinheiro e pensei quanto tempo vão eles (ainda) passar sem que alguém se lembre de os defender da confusão, do barulho e do peso que ano após ano suportam; d) a mania de se marcarem testes nas escolas de Guimarães para o dia 30 de novembro é de um vulgar e manifesto desrespeito pelas nossas tradições Nicolinas. Eu tenho uma teoria sobre qual a origem geográfica dos docentes que assim procedem, mas continuo a acumular dados; e) as pessoas que querem passar à nossa frente na fila do hipermercado pois só têm pão para pagar, não era melhor irem a uma padaria? f) os clientes que, na padaria, decidem comprar 80 gramas de fiambre. E é eterno o despir e o vestir do fiambre e o afinar da lâmina: dava para nós amassarmos e cozermos o pão que queríamos comprar, não era melhor irem a um supermercado? g) chamar de fascistas aos indivíduos das alíneas e) e f), só porque sim; h) os automobilistas que se colam loucos na traseira do nosso carro e aqueles que estacionam mal à nossa frente porque estão a trabalhar dizem eles enfadados com o nosso enfado. Estas coisas que me irritam são coisas sem importância. Como as moscas. São parvas, pequenas, irritantes, mas não me saem da frente.
Há um episódio que estimo particularmente: uma tia de um amigo meu passou, num consultório de dentista, à frente de todos os outros pacientes sob o pretexto de “ter a panela ao lume”. Julgo que a surpresa dos clientes que atónitos a viram esgueirar-se para a cadeira de dentista se deveu à originalidade da razão aparente da sua pressa, por ela tão bem urdida. Seria porventura interessante, de vez em quando, deixar que a sopa alheia babasse da panela. Só porque sim. Só para se aprender que os outros também existem e terão, porventura, a sua particular panela. Ou porque é Natal e devemos aos outros um bocadinho mais de respeito do que o costume. Bom Natal então.
 
Rui Vítor Costa
 

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