Terramotos

Pelas zero horas do dia 28 de fevereiro de 1969 iniciou-se o primeiro minuto do meu quarto de século de vida, que se completara às 24 horas do dia anterior.
Data redonda, início da idade de prata, se considerarmos que, como às bodas, aos quartos de século de vida se atribui a correspondência a um metal precioso. Prata para os vinte e cinco, ouro para os cinquenta e platina para os setenta e cinco. É o que agora valho …
Naquele momento estava eu a ler, deitado sob uma tonelada de cobertores, apenas com os olhos e a ponta de nariz emergentes da cobertura, e, claro, também a mão com que segurava o livro que então me prendia, pois ao tempo o fevereiro era gélido e casas com aquecimento eram mais que uma raridade. 
A minha casa, nº 145 da rua de Santo António, mais que centenária, tinha os interiores todos em madeira, tabique, cal e massas gordas.
Na casa pegada, do lado norte, vivia um senhor de apelido Leite, mas a quem todos chamávamos, vá-se lá saber porquê, o senhor Leites, caçador e, por isso, dono de alguns, talvez três ou quatro, cães de caça, entre perdigueiros e coelheiros.
Nas traseiras das duas casas, no enfiamento da sua linha divisória dos respetivos quintais, havia uma viela de servidão, que dava acesso à parte inferior da rua Gil Vicente, onde hoje existe a Garagem Gil Vicente, sendo o pequeno passeio à entrada desta, do lado esquerdo, correspondente à ponta final da tal viela, cuja entrada ainda existe, tapada por portal em ferro, exatamente ao lado do restaurante “Nora do Zé da Curva” cujo acesso se faz pela Garagem.
Nessa viela “moravam” os cães do Sr Leites, que, por vezes, no silencia do noite, se envolviam em discussões, sem o cuidado de recatarem da vizinhança as suas desavenças. Vezes outras eram, ainda que caninos, diálogos alegres e bem dispostos, sendo bem percetível quando a vozearia era de zanga ou de boa disposição. Porém, normalmente, duravam muito pouco tempo tais colóquios e sempre terminavam lentamente, espaçando-se os ladridos e calando-se, um a um os ladradores.
Quando eu já ia em 25 anos e três horas de vida, apercebi-me de que os cães tinham, de repente, começado a ladrar de modo diferente do costume: os ladridos eram de uma enorme insistência, em tom muito mais agudo e ritmo de muito mais elevada frequência, algo entre o aflitivo e o apavorado.
Não dei importância de maior ao facto, mas, a dado momento, reparei que de uma só vez, em absoluta simultaneidade, não só os cães se calaram como ficou um silêncio mais pesado que o negro silêncio da noite.
A minha sensação foi de alívio, pois se os cães a ladrar eram normalmente incomodativos, aqueles latidos tão diferentes tinham-me arrepiado um pouco, mas não tanto como a densidade do repentino silêncio que se abateu, pareceu-me que no Universo, quando cessaram.
Foi cerca de um minuto depois que ele se manifestou: primeiro com um ruído surdo, subterrâneo, que embora audível parecia passar das entranhas abaixo do solo diretamente para o interior do nosso corpo, sem passar pela atmosfera de permeio; instantes depois, com fortes sacudidelas que me fizeram ter a consciência de estar a ocorrer um tremor de terra. A violência do abalo fez-me recear a emergência de um verdadeiro terramoto, mas breves segundos após a terra cessou de tremer e, embora aquele ruído telúrico tivesse abrandado, não se extinguiu completamente. Comecei a respirar de alívio e preparava-me para retomar a leitura, quando um novo, mas muito mais intenso abalo, acompanhado do ronco, que aumentou de intensidade e se tornou pesadamente opressivo, me fez saltar da cama e correr para a porta da rua, pois aquilo para mim era já um terramoto.
Porém, segundos depois o abalo começou a abrandar até que, finalmente se extinguiu.
Voltava eu para o quarto quando verifiquei que os cães tinham retomado o seu ladrar, mas agora já não daquele modo aflitivo que fora o de antes do acontecimento.
Constatei, pois, que, na verdade, os animais, ou pelo menos alguns e entre estes os cães, conseguem pressentir, com alguma antecedência, a emergência de abalos sísmicos.
Mas naqueles breves minutos em que tudo se passou, o meu pensamento na possibilidade da morte fundiu-se com um outro, que, esse sim, foi como que o meu terramoto pessoal. É que estava previsto para dali a 17 dias o meu casamento, e o acontecimento geológico causou-me o intenso temor de que tudo pudesse ficar por ali e lá se ia o que tão intensamente, diria desesperadamente, o que eu, como a quase totalidades dos jovens e das jovens de então ansiavam: a noite de núpcias!
Morrer, que pudesse; mas não antes da usufruir o mundo de sensações, tão mágicas como indescritíveis, telúricas de um outro modo, proporcionadas pelo ritual daquela noite.
Não morri fez anteontem cinquenta anos, e ambos os terramotos me estão presentes como se tivessem acabado de acontecer.  

Guimarães, 19 de março de 2019 
António Mota-Prego
Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

Imprimir Email