Instantes de Vida

Antes de começar a escrever cada uma destas minhas crónicas mensais, entro sempre numa fase de certa angústia, na procura do assunto que deva abordar.
Julgo, porventura com alguma dose de pretensão, que os meus leitores esperam encontrar em cada um dos meus textos uma espécie de estilo temático e descritivo, e a vontade de corresponder a essa presumida expectativa leva-me a percorrer o fio do tempo, desde as mais longínquas memórias aos mais recentes acontecimentos, na procura do facto, da reflexão, do objeto que, como que por magia, me faça dizer – ei-lo! Eis o tema.
As memórias são sempre um recurso que, todavia, entendo dever usar com propósito e parcimónia, sob pena de cair numa espécie de saudosismo, com o que a tão exclusiva e bem portuguesa saudade sairia adulterada por excesso de condimento.
Há porém, ocasiões em que dela me nasce o assunto, numa espécie de inversão evocativa, pois que é o passado que me trás ao presente. Foi assim desta vez.
Estou em minha casa, no pequeno espaço a que chamo escritório, onde, na estante que o percorre e quase rodeia, a par dos livros que praticamente a enchem, tenho à vista inúmeros objetos, recordações de sítios onde estive, fotografias, que são sempre instantes de vida. Numa pausa para repousar a vista do brilho do ecrã do computador em que escrevo, olhei ao acaso para a estante e eis-me a percorrer, em pouco mais de um metro de espaço, como espectador de um filme em câmara vertiginosa, porção do meu breve tempo de vida – uns mais que outros, todos os tempos de vida são breves – concretamente os 45 anos que vão deste abril ao Abril de há 45 anos, saltando da foto da Sessão Inaugural da Assembleia Constituinte para a foto dos que, como eu, 40 anos depois na mesma sala a comemoraram. Das várias fotos de permeio, duas, do passado nelas fixado, apelaram ao meu mais fresco presente.
Numa delas estamos eu e o meu filho, em noite de um dia 29 de novembro dos inícios dos anos 2000, lado a lado, rufando cada um a sua caixa, em primeiro plano de extensa turba nicolina, anunciando a chegada do Pinheiro.
Na outra, setembro de 2012, somos três; colegas desde ainda tenra juventude coimbrã, colegas de casa, de curso, de profissão e unidos por uma amizade que nem o tempo nem as divergências, algumas bem profundas, conseguiram corromper.
A foto Nicolina traz-me até há dois meses atrás, altura em comecei a participar jantar que, na última sexta-feira de cada mês, junta nicolinos de várias gerações, mas sobretudo da minha e sua mais próxima, aquelas que nasceram ao som dos canhões da II Guerra Mundial ou com a atmosfera ainda contaminada pela poeira que, apesar de já calados os canhões, ainda não assentara.
Na derradeira sexta-feira de março, frente a mim três bancários reformados em boa hora, os encarregados das contas do jantar, conferenciavam demoradamente com ar grave, calculadoras em punho sofrendo grande azáfama digital, o que me deixou intrigado, pois as contas até eu, de olhos fechados, faria em um ou dois segundos, e disse-lhes: então que raça (a palavra não foi esta, mas outra de nicolina extração) de complicação é essa? Isto é só multiplicar o número dos presentes por 20, que é o preço por cabeça fixado para o repasto.
Resposta: estás enganado. O produto dos 20€ vezes o número dos comensais tem que dividir-se por três; uma parte é para pagar o custo da refeição, outra é para gratificar os empregados… aqui houve uma pausa que me levou a inquirir – e a outra? ao que, com olhar travesso e sorriso maroto me foi respondido – a terceira parte é para um fundo destinado a mandar fazer coroa de flores e uma placa quando um de nós morre.
Perante tal resposta, eu e os mais que ouviram o diálogo, rimo-nos com gosto, como se nada tivéssemos a ver com o dito que, face às circunstâncias, necessariamente tinha que ter graça. Acho eu …
A outra foto é dos três “sobreviventes” de entre os cinco colegas que habitámos simultaneamente a mesma casa coimbrã. Os dois que faltam, felizmente não “se passaram”; um, já quase no fim do curso, enamorou-se de uma americana (Marilú) do curso de férias, a qual lhe prometeu meios de chegar aos Estados Unidos e de aí ganhar para o sustento, promessa que ele aproveitou assim se livrando da tropa e mobilização certa para a guerra. Continua lá, divorcido da Marilú e casado com uma Marili!. Soubemos isso, os três a que me refiro, na passada sexta-feira, por uma irmã do referido. O outro, já no último ano de Direito, resolveu casar e, se até acabar o curso ainda frequentou a casa comum, acabado ele exilou-se no Porto, onde a mulher já era abastada proprietária imobiliária, e não deu mais sinais de vida. Sabemos que está vivo, porque sabemos que não morreu: mas se ele vive, ou não, isso não sabemos.
Pois agora, bem mais senhores do nosso tempo por voluntário e merecido abrandamento da lufa-lufa profissional, vivendo eu aqui em Guimarães e eles no Porto, resolvemos, há uns meses atrás, que uma vez por mês almoçaríamos juntos, alternadamente cá e na Invicta, mui Nobre e Leal Cidade, e assim temos feito.
Só que na última sexta-feira, almoço do mês corrente, porque estava bom tempo, depois da refeição fomos desfrutar de um bom pedaço da tarde no Centro Histórico, terminando o circuito no Largo da Oliveira, onde nos sentámos para longo e pausado tomadio.
Encantados, mais que isso, deslumbrados, os meus amigos sentenciaram: daqui para a frente, a regra passa a ser outra. Com bom tempo o nosso almoço será sempre cá em Guimarães e passamos a tarde nesta praça.
São ditos que alimentam o já bem nutrido amor que tenho a esta maravilhosa cidade e o orgulho pela pertença a uma comunidade que tão bem dela cuida e tão intensamente contribui para o seu encanto.
 
Guimarães, 15 de abril de 2019
António Mota-Prego
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PS – Incrédulo, comovido e inconsolável, acabo de ver Notre Dame em chamas.

terça, 16 abril 2019 23:13 em Opinião

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