Exame de condução

Há um conjunto de assuntos tabu de que as pessoas não falam facilmente com outros. Dívidas pessoais, sexo e exames de condução estão entre esses assuntos. Decidi hoje sair do armário quanto ao último dos itens.
Apesar de não haver estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o assunto, suponho ser bastante alta a percentagem de quem chumbou no código ou na condução, ou pura e simplesmente comprou a carta. Eu estou nesse grupo se bem que, penso, no subgrupo mais aceitável: o dos que chumbaram no exame de condução. Está dito. Que refrescante alívio!
Tirar a carta em Coimbra é como tirar o curso numa prestigiada universidade. É distintivo. Uma cidade de altos e baixos exige muito mais do que Aveiro, Braga, Castelo Branco. No entanto cheguei ao meu primeiro exame com alguma confiança e tinha, segundo o meu instrutor, motivos para isso. Calhou-me um engenheiro tipo pop star mas simpático, de óculos escuros e gravatinha. E a coisa estava-me a correr bem, parava nos stops, metia as mudanças com ligeireza, conferia a parafernália de retrovisores com elegância. Toca então a subir a Av. dos Combatentes, estou com sorte pois o amarelo do último semáforo calha-me a mim. Não tenho ninguém à frente: perfeito. Mas, inexplicavelmente, deu-me uma de artista de circo, Pepito vai tentar dar um mortal na corda, silêncio por favor, e lembrei-me, para mal dos meus pecados, de ajeitar o banco do condutor quando a inclinação da rua, vivamente, o desaconselhava. Resultado: fiquei como um astronauta a sair da atmosfera terrestre, projetado na inércia para o fundo do veículo. Veio o verde e eu ainda lá estava, quase na mala a tentar recolocar o assento e esticando os dedos dos pés para não arruinar, como arruinei, o ponto de embraiagem. Vermelho, verde novamente e eu lá arranquei, mas o mal estava feito. Aceitei o chumbo com resignação culpada. Foi justo. Da segunda não. Sim foram duas: duplo alívio confessional! Da segunda apareceu-me um oficial nazi. Eu estava tranquilo, tomei um calmante: o meu corpo aceita os medicamentos com genuína eficácia. Fazem-me sempre efeito. Como eu não estava habituado a calmantes entrei num torpor pacífico absolutamente brutal, aceitaria naquela manhã o deflagrar da III Guerra Mundial sem particular desconforto.
Os engenheiros fazem parte desta tremenda engrenagem. São pop stars, são oficiais nazis, inatingíveis, incomunicáveis, prepotentes. A designação académica tem mais a ver com o temor reverencial do que com a formação. Quanto engenharia é necessária para ordenar vire à direita? Nenhuma seguramente. Estes engenheiros mereceriam também um estudo profundo: como são escolhidos, se a má disposição é congénita ou adquirida com treino, se acasalam com outras espécies, se já nascem afinal engenheiros.
Tantos reveses não me tiraram a convicção de que sou um bom condutor. Tenho essa certeza assim como 99% dos homens o que é, convenhamos, estatisticamente impossível. A condução é o oposto da vida real. Na condução os homens são complexos e as mulheres previsíveis. Pela condução os homens são asseados nos seus carros e as mulheres absolutamente desleixadas. Tudo exatamente ao contrário. As mulheres cabem apenas em duas tipologias: as descontraídas e as contraídas. As descontraídas conduzem como se não estivessem a conduzir. As contraídas conduzem apertadas entre o banco e o volante, sem qualquer centímetro de folga, sempre tensas como o capitão de barco no meio da tempestade, nada ouvem ou veem além da necessidade de terminarem aquele extenuante tarefa. Os homens têm cerca de 432 tipos: os fangios, os agressivos, os passivos, os legislativos sempre a apontarem as novas regras, os irascíveis, os solitários que conduzem como se a estrada fosse o seu estado de espírito, os imprevisíveis, e os que conduzem de chapéu ou boné, de longe os que mais me apavoram. Lincoln referiu que só dando poder a um homem é que se perceberia, realmente, o seu carácter. Se ele vivesse nos dias de hoje substituiria, sem hesitar, o poder pelo carro: deem um carro a um homem é irão perceber, realmente, quem ele é.
Conduzir na cidade de Nápoles foi o meu mais perfeito exame e o reforçar da minha convicção. Nada prepara um homem não napolitano para conduzir em Nápoles. Nada! Quando saí da garagem questionei no meu mais aprumado italiano posso girare a sinistra? Ele arregalou os olhos como quem tenta perceber um extraterrestre e eu compreendi logo ali que poderia virar à esquerda, à direita, sobre a linha contínua, pelo vermelho adentro, poderia tudo! Uma pista de carrinhos de choque é, comparado com Nápoles, de uma organização e aprumo teutónico. E no meio daquela selva de chapas amolgadas lembrei-me do engenheiro que me chumbou, da segunda vez, por ter dado duas voltas a uma rotunda. Tenho perfeita consciência da raridade da situação provocada pela calma bovina de que me vi então imbuído. Chumbei de forma inconstitucional, deveria ter recorrido para o Tribunal! Tarde demais agora. Palerma gritei-lhe eu no trânsito de Nápoles, com um ódio esférico e retroativo. E os napolitanos chamaram-me nomes mas de uma maneira ... fraternal. Abri a janela e gritei: a fare in culo ingegnere.
 
Rui Vítor Costa

terça, 23 abril 2019 19:52 em Opinião

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