A “capacidade de pensar”

Isto é, a aptidão que, pelo alto grau atingido, distingue o sapiens sapiens dos restantes primatas e demais animais, permitindo sobrepor-se lhes e, de certa maneira, até à própria natureza.


É que ao longo de milénios, no individual e no agregado propensamente cada vez mais amplo, foram-se memorizando dados, correlacionando-os e nisso gerando desenvolvimentos inovadores (numa similitude com a intrincação evolutiva da matéria), cumulando assim saberes que produziram instrumentos sucessivamente mais complexos e determinantes para se atingir o actual nível de ciência e tecnologia; permissivo, este, de estilos de vida susceptíveis de satisfazerem necessidades antes insuspeitas e cada vez mais abrangentes. Ao mesmo tempo, paralelamente, foram sendo concebidas regras de convivência disciplinadoras da vida social nos seus múltiplos aspectos e que, à sua circunstância, assentavam em juízos de valor resultantes de cada concreta cultura. Aquilo que se consubstanciou em o Direito e, dentro deste, as suas especificidades filosófica e teórica. E no que nos concerne, a nós europeus continentais, numa trajectória milenar que tem assentado na predominância da Lei; na “dura lex, sede lex” e, mais recentemente, em o Estado de Direito (por cá, artigo 2.º da Constituição da República).

Ora as invocadas especificidades, no seu percurso de compaginação com a realidade cultural espaço-temporal continental, tenderam, e devem tender, a encontrar a melhor Justiça através da dicotomia do dever ser e do ser; entre o que se considera justo e o que se fixa na Lei (direito positivo). E é essa apreciação dos interesses em jogo sobre uma concreta perspectiva ética social, na sempre relatividade do melhor bem e do menor mal, quem orienta aquele dever ser, numa conjugação com o ser que é aferida pelo barómetro da perenidade deste; a aceitação da sua adequação. Claro que os concretos campos de aplicação da Lei vão sofrendo a marcha contínua dos tempos, o dito processo histórico, por o que essa perdurabilidade tem a ver com a leitura (interpretação) que a Lei é susceptível de comportar. E esta, a par de ter de ser elucidada por especialistas (leitores com formação técnica direcionada, como em qualquer outra disciplina dita científica), assenta num suporte fixo, o texto, que, portanto, funciona como delimitador das interpretações. E assim deve ser, por a Lei, ao ser genérica e abstracta, corresponder a uma fôrma passível de conteúdos que se adaptem aos seus contornos, segundo critérios hermenêuticos elaborados doutrinalmente e que ela própria deve definir (por cá, artigo 9.º do Código Civil). E até, em caso de necessidade, extravasar aquela fôrma com interpretação analógica e com a integração de lacunas (nos ramos de Direito em que tal leitura extensiva seja conforme à melhor efectivação da Justiça e, neles e sempre, na ressalva de direitos fundamentais).
Entretanto, convém distinguir a Lei de a Regulamentação. Esta derradeira mais virada para procedimentos e elencação de propósitos; para o concreto daqueles primeiros e para a listagem de situações permissivas ou proibitivas. Para, na sua muito maior clareza de conteúdo (ao não ser genérica nem abstracta), ser mais acessível. Lei e Regulamentação que, no fundo, consistem na base da distinção entre o sistema jurídico continental e o anglo-saxónico; com este último a impor-se um pouco por todo o lado, numa proliferação regulamentadora que, inclusivamente, já atingiu o legislador e resulta do próprio sistema, em que tudo é, como diríamos, aferido pela máxima de que o tempo é dinheiro; da pressa e numa vivência subordinada a um rápido imediatismo. Só que a Regulamentação, na sua compreensão de acessibilidade fácil, conduz ao fundamentalismo na leitura e, assim e paulatinamente, vai olvidando o dever ser, o juízo de valor social que a pressupõe e cai-se num legalismo redutor, vazio e casuístico. Com resultados que começam a ser visíveis, como os relatados na edição deste Semanário de 26 de Junho último, aquando da “Corrida dos Conquistadores” (sem, no entanto, sobre o ocorrido se emitir qualquer juízo; por ignorância da objectividade factual que lhe esteve na origem).
Mas como o espaço vai minguando, é altura de adiantar que todas estas mais que sintéticas considerações vêm a propósito de um artigo inserto no Público (Victor Constâncio, um perfeito burocrata , de JMT), em que se conclui que a ética deve presidir à Lei. E nesse sentido escreveram-se afirmações como “na devoção acéfala não à lei, mas, ao legalismo.”, ou “ a lei em vez de ser suporte para uma acção justa, transforma-se num escudo de “neutralidade”.”, para na sequência se poder introduzir a ideia da “banalidade do legal”; expressão esta transportada, como nele se cita, do conceito de “banalidade do mal” da filósofa idealista alemã de origem judia, Hannah Arendt.
Convém, porque é uma memória que deve ser de permanência nestes nossos dias, atermo-nos sobre as causas daquele conceito de uma mulher que foi discípula de Heidegger, Husserl, Jaspers e amiga de Walter Benjamin. Naquele tempo já a residir nos USA, e já de nomeada, foi convidada pela revista The New Yorker para cobrir, em o Israel de Ben Gurion, o julgamento de Adolf Eichmann, antigo oficial das SS capturado em 1960 na Argentina pela Mossad e implicado na organização, recolha e envio, de 5 a 6 milhões de judeus, homossexuais, comunistas e outros opositores do regime nazi para campos de concentração, aonde eram assassinados. Um, portanto, dos cúmplices do Holocausto. E tendo ela aceite o encargo, tempos depois, escreveu o seu relato em cinco artigos (e posteriormente a obra Eichmann em Jerusalém) que foram publicados e provocaram intensa polémica, rejeição e, mesmo, hostilidades diversas e por vezes agressivas, nomeadamente da comunidade judaica. Tudo porque, focando do ponto de vista filosófico o a que tinha assistido e da leitura das actas do julgamento, concluía que o regime nazi tinha conseguido obter a resistência à “tentação” (de o bem: o não matarás) e, logo, o grosso dos alemães, e não só (na implicação dos Conselhos Judaicos), mantiveram-se na monstruosidade que ia sendo cometida, permitindo que homens comuns como o julgado pudessem afirmar da sua irresponsabilidade por, apenas, se considerarem zelosos cumpridores de ordens superiores, visto que não tinham o poder decisório que os compelia a tais práticas desumanas. Por isso, ao Eichmann imputou-lhe a incapacidade de pensar; à sociedade alemã, a apatia e, de certo modo, a impunidade. Daí a “banalidade do mal”.
Que, por cá e neste presente, num travestimento interessante e com razão de ser, aquela extrapolada “banalidade do legal”; ademais potenciada e agravada por a sua lateralidade burocrática, esse escolho insano em que se tropeça constantemente, incontornável, desmotivador e paralisante.
Não será, pois, tempo de se ir renovando a “capacidade de pensar ”?

Fundevila, 17 de Julho de 2019


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