Talvez ficção

Consigo imaginar como se inventa um tema musical, assim como consigo entender como nasce e como se excuta obra de artes plásticas. Porém a génese dos romances, dos bons romances, continua a ser para mim algo de prodigioso, pela capacidade de imaginação e inventiva que revela.

 

Eu, que me julgo dotado de uma razoável capacidade descritiva de realidade que se me depare ou de acontecimento que viva, capaz até de adornar aquela e este com algum colorido que, não lhes deturpando a essência, lhes acrescentam atrativo, eu, pretensamente capaz disso, nunca tive jeito, quando era novo, sequer para inventar estórias para os meus filhos, nem agora, que o não sou, para entreter os meus netos.Consigo imaginar como se inventa um tema musical, assim como consigo entender como nasce e como se excuta obra de artes plásticas. Porém a génese dos romances, dos bons romances, continua a ser para mim algo de prodigioso, pela capacidade de imaginação e inventiva que revela. Eu, que me julgo dotado de uma razoável capacidade descritiva de realidade que se me depare ou de acontecimento que viva, capaz até de adornar aquela e este com algum colorido que, não lhes deturpando a essência, lhes acrescentam atrativo, eu, pretensamente capaz disso, nunca tive jeito, quando era novo, sequer para inventar estórias para os meus filhos, nem agora, que o não sou, para entreter os meus netos.
Recentemente referi publicamente um caso em que estive profissionalmente envolvido e que me parece ter todos os ingredientes para que um ficcionista dele fizesse um bom romance. É minha convicção que poderia mesmo vir a dar um filme interessante; mas isso implicaria que a realidade que constatei fosse adornada com a tal imaginação que é a dos romancistas.Já tenho lido entrevistas a vários escritores, em que lhes é perguntado se, quando partem para a escrita, já está concebida a essência da história, a qual desenvolvem transformando-a em romance, ou apenas têm um início, seja um lugar, uma personagem, um mero episódio, e a partir daí o romance vai sendo escrito, como se fosse cada parcela já redigida a impor ao escritor a sequência do enredo. Não recordo que alguma resposta à questão me tenha sido suficientemente esclarecedora.
A convicção que me fica do que tenho lido é a de que os romances partem sempre de uma realidade vivida ou apreendida por quem escreve, não raro de um breve momento, de uma personagem que fugazmente captou a atenção e motivou a capacidade criativa do romancista.Que romance poderia resultar, se dela se tivesse apercebido o escritor, da observação de uma mulher que vi passar frente à torre da igreja, finda a missa vespertina: figura curiosa, baixa e seca, de passo largo sob saia comprida, casaco a três quartos, mãos entrelaçadas e encostadas à cintura, saco plástico pendurado no braço esquerdo, tronco levemente curvado para a frente, pescoço algo comprido dando seguimento à inclinação do tronco, mas de cabeça erguida, cabelo curto e olhos fixando o solo apenas um pouco à frente dos passos que dava, caminhando energicamente como se cortasse o vento. Toda ela ressumava misticismo e, paradoxalmente, também uma impressionante dureza.
Tudo aponta para que aquela mulher seja possuidora de uma imensa espiritualidade acompanhada de grande determinação, fonte da sua expressão a um tempo serenamente altiva e hermeticamente fechada, bem como do seu aparente alheamento de tudo o que a envolvia, nomeadamente do aglomerado de pessoas que, findo o ato de culto, ficam a conversar à porta do templo, em grupo que, em todos os dias daquela missa vespertina, vai diminuindo lentamente com sucessivas despedidas, feitas de discretos acenos de mãos, alternados com amigáveis e algo cerimoniosos acenos de cabeça.
Repararia o escritor que, naquele dia, partidos todos os habituais, um conjunto de pessoas não costumeiras naquela hora e naquele lugar, vestidas de escuro, permaneceram ali, muito chegadas umas às outras, falando em tom pouco mais que ciciado, com ar sério e grave. Missa de sétimo dia, concluiria o autor do romance já em gestação. Morte que se julgara natural mas veio a descobrir-se violenta, sem que, todavia, se conhecessem inimigos ao falecido, ou falecida, cujo estado civil, casa de morada quando em vida, círculo de relações, juventude, infância, o escritor decidira descrever com o detalhe de quem lhe partilhara a intimidade.
O romancista relataria ao pormenor a conversa do grupo retardatário, todos familiares da pessoa por cuja alma ocorrera o sufrágio, e relataria que alguém de entre eles teria reparado no ricto de dureza e no alheamento da mulher que passara, que já vira não recordava bem onde, mas em ocasião e comportamento estranhos, vendo nisso motivo para lançar sobre ela suspeita de qualquer espécie, ainda não concretamente determinada, mas que, mantendo-se ao longo do romance, só a breves páginas do final seria confirmada, ou arredada para se concluir que, merecedor das suspeitas, então já confirmadas, seria não a tal mulher, mas o mais improvável dos presentes naquele momento que acicatou a imaginação do romancista.
Toda a história teria lugar em cidade sem nome, não sendo os delas os nomes das  personagens, certo sendo que das simpáticas seriam nomes de pessoas reais com quem o autor do romance simpatizava, e de pessoas com quem antipatizava os nomes das personagens antipáticas.Fictícios igualmente ou igualmente ficcionados os topónimos, os lugares, os sentimentos – amores, paixões correspondidas e repudiadas, invejas, malquerenças, ódios – atos de solidariedade, de abnegação, atos incompreensíveis e ações reprováveis, tudo isto sairia, perfeita e cativantemente, da imaginação do escritor, de tal modo que o leitor acabaria por se sentir mergulhado numa realidade fictícia sem que, a partir de certo momento, se apercebesse da ficção, tal como eu já não distingo se o que acima disse tem algo a ver com a realidade ou se tudo é simples invenção, mero resultado do propósito assumido de, a cada quatro semanas, fazer entrega de uma crónica na redação deste semanário.

Guimarães,15 de outubro de 2019

António Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

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terça, 15 outubro 2019 21:37 em Opinião

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