O meu único pecado mortal

Uma das coisas que nos tempos de hoje, não o dia em que escrevo, mas o período errático que de há anos vamos vivendo, me causa alguma inveja, são as ortóteses de ortodontia, vulgo, aparelhos. Puseste aparelho? ouve-se perguntar, assim sem mais menção alguma ou gesto auxiliar, e já sabemos que o inquirido passou a ser portador de uma das referidas ortóteses, e não a outro aparelho qualquer, como por exemplo aparelho auditivo, pois que, neste caso, o facto normalmente não é objeto de questionário, sendo-o sim, e frequentemente, a questão inversa, tipo – porque não usas aparelho? quando o interlocutor é modesto na perceção do que se lhe diz ou se lhe questiona.


Aparelho é, pois, para todos os efeitos e particularmente o da “OPINIÃO” que ora expendo, o que se vê cada vez mais acoplado aos órgãos mastigatórios e compressores, consoante sejam usados para cumprir a onerosa tarefa de manter a vida, ou a reprovável função de ataque às carnes do próximo em momento de exaltação.

Fico espantado com a quantidade de usuários e usuárias de aparelho, pessoas cuja faixa etária vai desde a de dentição ainda não completa até à de dentição já não completa, que mais propriamente se denominaria desdentição.
E os aparelhos? É espantosa a profusão de estilos, que já nada têm a ver com aquela simplicíssima tirinha de arame sobre os dentes de um lado ao outro, especialmente da arcada superior, que eram os únicos que existiam na minha meninice e adolescência.
Agora, ele são os da espécie pequeno círculo metálico ou sintético sobre cada uma das esmaltadas pérolas dentárias, outros contêm elásticos de um lado e outro das arcadas, por tal forma que quem os usa, ao falar e, sobretudo, ao rir, parece ter algo de diabólico, como se a função dos elásticos fosse a de acrescentar eficácia ao ato de morder; há-os também de modo corrido em discretíssimo material transparente que, contrariamente ao pudor que rodeia os de audição, leva o portador a escancarar a boca em expandido sorriso e dizer a quem não repara – vês? pus aparelho!, num assomo de vaidade por aquilo que, assim comecei por dizer, faz com que alguma inveja desponte no recôndito do meu peito. Refiro que, em minha teoria, o recôndito do peito é no interior deste, onde se alberga o imaterial e invisível do ser humano, exatamente o inverso do que se passa no seu exterior.
E qual a origem do meu confesso vil sentimento, aliás um dos sete pecados mortais, que, provavelmente (sou otimista) me garantiu já pena eterna, pois que não é esta confissão dele, aqui pública e honestamente feita, a adequada para dele me limpar? Eu conto, e talvez isso me valha alguma atenuante.
Quando os meus dentes eram ainda de leite, acontecia uma ou outra vez algum deles me doer, causando-me, além da dor, uma curiosa impressão de o dente ter crescido de repente.
Como pessoa prática que era, a minha avó pegava em mim e levava-me a um dentista com torturadoria montada junto à Igreja de São Pedro, no Toural de baixo, o qual, lesto, me arrancava, de um só golpe de alicate, a dor e o dente.
Claro que isto uma e outra vez, fez com que cada dente definitivo que nascia, após romper se permitisse liberdades de percurso que vieram afetar o espaço que deveria ser o do seu contíguo. Conclusão, acabei por tornarme uma espécie de candidato a Mister Dente Torto. Só que concurso não havia.
Por essa altura, andaria eu pelos 9 anos de idade, para casa dos meus avós veio viver uma primita um ano mais nova, a qual foi objeto da mesma terapia que a mim me fora infligida. Anda comigo menina! e lá a levava a minha avó, puxando-a por um braço, ao tal extrator radical de dores de dentes, a miúda em infernal berreiro, pois eu, sadicamente, já lhe tinha contado, à primeira dor de dentes que de que ela se queixara, qual o tratamento a que iria ser sujeita.
Poucos anos depois, já eu e a prima munidos da dentição definitiva, inventamos o concurso Dente Torto, a ver qual de nós arvorava a mais imperfeita dentição, o que fazíamos arreganhando a dentuça, lado a lado, frente ao espelho.
Porém, à época, aliás como ainda hoje em alguns microcosmos, mas não tão micro como isso, uma coisa era ser rapaz, outra bem diferente era ser menina (dizia-se rapaz e menina e não rapaz e rapariga, pois este último termo era reservado a certo extrato social).
Pois a diferença estava, entre outros itens mais, no seguinte, de acordo com a teoria das minhas tias, senhoras que que já apresentei aos meus estimados leitores: os rapazes podem ser feios, mas as meninas não. Pelo menos, digo agora eu, no que à mão da pessoa humana é possível [faço esta precisão, pois sei daquele caso em que o marido, estando a esposa a pintar os lábios, lhe perguntou – para que pintas os lábios? respondendo ela – para ficar bonita. E ele - então porque não ficas? ... Claro que esse era um dos casos em que beleza, beleza, só mesmo a fornecida pelo Criador].
Foi aquela filosofia das tias que fez com que à minha prima foi aplicado um aparelho que a arredou definitivamente da mais longínqua hipótese de se apresentar ao supra referido concurso, pois ficou com uma dentição perfeitíssima, tendo sido então que entrei em pecado, precisamente quando, curada a menina do defeito filho da minha avó e do falado dentista, pela primeira vez, a par um do outro, eu e ela exibimos ao espelho, alargando a boca para ambos os lados à força de indicadores em gancho, os nossos respetivos teclados de esmalte.
Tortos que são os meus dentes, ainda os vou tendo todos e em perfeito estado de funcionamento, facto que, aos poucos, me vai libertando da antiga inveja, que espero ter completamente extinta a tempo.
A todos os meus leitores votos de um Bom Natal.

Guimarães, 10 de dezembro de 2019
António Mota-Prego
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