Suposições... ???

Sem cheta da moda de sujeição a um cientismo requerido a qualquer texto de afirmação e agudizada ne

stes dias de uma positividade filosófica imperante, deitemo-nos a uma digressão iniciada nas profundas dos tempos e no que tange aos primatas que somos: à nossa espécie humana.
Nela, na sua relação com o fogo.

Múltiplas serão as causas dessa ligação. Mas desde que ele foi aproveitado, ou se apreendeu a fazê-lo, muita água correu para jusante. E só a estiagem que se diz que vai desvirtuando alguns espaços diminui, ou vai absorvendo, essa corrente contínua. Mas, mesmo assim, os vestígios dessa vetusta conexão permanecem; senão fisicamente, pelo menos em idealizações de alguma maneira estruturantes ... ainda.
Não será descabido, por conseguinte, reportá-los. E aos presumíveis efeitos duma sua ausência.
Assim e de há algumas centenas de milhares de anos a fogueira foi o ponto aglutinador dos grupos dessa espécie de hominídeos. Quer ao ar livre, quer em cavernas (tendo nestas últimas um carácter de maior estaticidade; de, por vezes, permanências de séculos e até, escalonadas no tempo, de diferentes seus géneros). O fogo, isto é a luz, o calor, a preparação de alimentos e também a defesa contra visitas indesejadas, eram alguns dos factores que aglutinavam os membros dessas comunidades. E não é difícil imaginar que à sua volta, no cerco do escuro que estava para além desse centro vivente, se comunicava. O dia a dia e suas peripécias, tristezas e amarguras ou felizes sucessos (os nefastos e fastos romanos), teriam sido mote para tretas ... e não só. Este ademais e naturalmente, seria a transmissão de saberes e reminiscências que eram, e foram sendo, a tradição da cultura que inculcavam e em que, crê-se, por até uma questão de sobrevivência básica, a hierarquia no colectivo já se impunha numa praxis a ela subordinada. E deste modo por milénios, dezenas, senão mesmo centenas deles, esse convívio interrupto à volta do fogo (e, claro, não só aí) persistiu, com ganhos que, numa visibilidade crescente em termos de uma progressão inicialmente muito lenta, dos instrumentos elementares à roda e por aí fora, nos trouxeram até aos primórdios da história, até a sucessivas sedentarizações. Do bivaque à casa. Salto este de enorme importância na evolução da espécie. E que acelerou definitivamente o desenvolvimento desta aonde ocorreu singularizada em unidades familiares. Ainda que, nos seus começos e por transladações solares potenciadíssimas, esse abrigo fixo fosse mais que rudimentar e embrião do sequente processo de crescimento funcional da unidade habitacional. Isto, maioritariamente neste finis terrae deste recanto ocidental do grande continente em que estamos, península que é a em que nos conteremos, sem embargo de similaridades um pouco por todo o lado.
Assim a casa mediterrânea e a europeia. Gradualmente ampliada e dividida pelas utilizações que dentro delas se foram diferenciando. Concomitantemente com a implementação, por e nela, da família monogâmica patriarcal. E o tudo a potenciar um assentimento nocional de pertença, ideia já bem presente na Odisseia e que, depois, com os romanos e tomando-o dos deuses protectores que concebiam para a casa, coincidiu com o designativo de lar; conceito que à pertença somou o duma identidade física e geracional (bem comprovado pelo uso de toponímicos, incluindo neles o específico, e ibérico, de solar).
Casa dos primórdios, lar, onde a fogueira primitiva tinha lugar de relevo (até pela alguma dificuldade em fazer o fogo e a logo necessidade duma sua conservação) e ao redor da qual prosseguia muita da vivência conjunta, da comunicação e transmissão da cultura herdada e praticada; e germinava a necessidade do posicionamento no agregado (hierarquia). E nisso se foi prosseguindo. E de então para cá muito menos água correu, então e já nessa altura, por debaixo de pontes. E as diferenças de estatuto social dos nela habitantes, da sua capacidade económica, foram distinguindo as casas, os lares, que se foram estruturando segundo condicionantes que se lhe queriam emprestar para finalidades diversas (como se pode observar, voando fora e exemplificando, da Domus Aurea, em Roma e, nesta, com os simultâneos apartamentos das insulae; ou, mais perto de nós, em Inglaterra, com o Palácio de Blenheim e os bairros industriais da altura), originando, com isso, organizações familiares também distintas. Disparidades que igualmente, como se disse, se repercutiam na identidade familiar. Ao mesmo tempo que se mantinha ou afastava o fogo primitivo, que, neste último caso, se foi deslocando da lareira (pedra do lar) para aquele dito conceito de lar (em que essa antiquíssima relação com o lume como que passou a simbólica; fosso que a tecnologia mais agravou) e as vivências que dela se curtiam transferiram-se para outras formas de convívio praticadas em divisões a isso dedicadas, nomeadamente a das refeições. E, no seguimento do processo histórico, a família burguesa expressa bem a imagem dessa migração e o aparente culminar duma evolução da família monogâmica patriarcal. Assente aquela, não se o deve menosprezar, no apoio físico de uma casa que a enquadrava, permitia e de certo modo referenciava.
Depois, que ainda tem havido sempre um depois, a revolução industrial, a diferenciação e ampliação desmedida do factor trabalho nos sectores secundário e terciário, a luta por direitos individuais igualitários, os avanços científico e tecnológico, o fenómeno urbano (explicável em grande parte pela conjunção dos outros), criaram um cenário novo, em que o modus vivendi habitacional deixa de ser alusivo para a maioria das populações. O tudo agravado pela sociedade de consumo que privilegia o efémero, o supérfluo e incita à satisfação pessoal (o líquido de Zygmunt Bauman). Num caldo que estiola a relação familiar, gerando outras relações mais fluidas, menos estáveis e que se vão afastando da ideia de lar (aqui e ali, ainda sentida na longínqua - no espaço e no tempo – casa de família rural e na noite de Natal). E a família entra em desagregação. O indivíduo fecha-se em si, esquecido do longo caminho que herdou e que deveria prosseguir, da fogueira primitiva à família, ao lar, numa continuidade ainda indefinida e que não se consegue sequer esboçar com nitidez.
Será assim?
Interrogação que não assume qualquer saudosismo (até porque a História ensina que a repetição nunca se verifica), mas que, apenas, tenta constatar hipotética realidade nestes primórdios do surgimento de uma nova espécie no planeta: a máquina inteligente, autónoma e a prazo, previsivelmente, independente do homem.

Fundevila, 12 de Fevereiro de 2020


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