A aristocracia da dor



As nossas caras, as nossas feições, são mais esculpidas pela dor que vamos cumulativamente


sentindo, do que propriamente pelo tempo, pela contínua oxidação a que nos sujeitamos, existindo.
A elegante escrita de Marguerite Yourcenar, que revisitei com renovado prazer, dá ao tempo o
poder de esculpir. Mas engana-se, digo-o com ignorante atrevimento. O tempo é o cenário de
Einstein. É inexorável, mas mudo e sobretudo relativo. Ataca o bronze, ataca a pedra, mas é o que
está dentro do tempo não o sendo, como a dor, a angústia, e mesmo até a alegria, o que
verdadeiramente tem poder para nos esculpir, moldar, modificar.

Num tempo em que as lojas comerciais eram mais do que saldos e oportunidades, eram
sobretudo mais que os 9,99€, eu via claramente a dor de outros na sapataria agregada à casa onde
cresci. As lojas foram, sem dúvida, os divãs do psiquiatra num Portugal que já não existe mais. As
lojas eram sobretudo locais de conversa. Ligeira ou profunda, dependia dos dias e das
circunstâncias dentro deles. Hoje as lojas atraem-nos e regurgitam-nos após a compra. Dantes
havia sofás nas lojas e não havia música aos berros e luzes que nos fazem parecer num
interrogatório do qual queremos rapidamente escapar. Muitas lojas, dantes, tinham a quietude
necessária à confissão.

O que sempre me impressionou vivamente nas conversas de loja a que assisti era quando o
tema tinha elevado grau de dramatismo: uma morte, uma doença, uma traição. Quando por
esquecimento eu não era intimado a sair, ficava a absorver tudo aquilo. Toda aquela dor, toda
aquela angústia. Quando se é pequeno ainda não existe dimensão para a entender, mas o
sofrimento alheio atrai pelo lado dramático: como num filme. Eu ficava preso à angústia alheia não
pelos factos em si, mas pela forma como as pessoas encaravam a sua circunstancial desgraça.
Muitas, recordo, choravam e descabelavam a dor. Mostravam-se sem filtros e carregavam na tinta
do desgosto com histriónico exagero. Eram por momentos alvo de todas as atenções e isso
reconfortava-as. É dessa matéria carregada e colorida de que se alimentam hoje as televisões e os
jornais mais sensacionalistas.
Por outro lado, em clara minoria, existiam aqueles que no meio do sofrimento individual
falavam baixo e respondiam às questões mais por educação do que por desabafo. Metiam para
dentro. Esses - os aristocratas da dor – sempre me impressionaram vivamente. Ainda hoje. Quando
alguém esconde a angústia que deveras sente, sinto por ela uma empatia infinita e uma vontade
absurda de me conectar novamente com Deus.

A aristocracia da dor é um espelho da aristocracia de todos os sentimentos e está em vias de
extinção, como as lojas onde se conversava. Tudo o que existe é para ser partilhado e,
frequentemente, berrado. É o que está a dar como o coronavírus que impressiona pela histeria
coletiva. E isso pega-se e impregna a política: foi só ver o ar de traquina satisfação do Primeiro-
Ministro quando visitou, antes de Marcelo, um infetado. Costa 1 – Marcelo 0. É ao que chegamos,
sem aristocracia nenhuma.

É na minha barbearia que eu encontro o Portugal das lojas onde se conversava. A barbearia
está, mesmo assim, entre a loja e o consultório. É mais serviço que comércio. A minha barbearia
não tem a funcionalidade das novas barbearias onde se pode beber um copo ou jogar bilhar, ou as
duas coisas – o que me parece igualmente magnífico, apesar de nunca o ter experimentado. A
minha barbearia é uma máquina do tempo, mas para trás. Tem o jornal desportivo e o JN para
amaciar a espera. Nela discuto a bola, o pedal, o coronavírus se houver hipótese. Não há barreiras.
Ou melhor há: nunca poderia um barbeiro teletrabalhar. O cabelo e a barba não se compadecem
com a distância social.
Mesmo assim o vírus avança sobre nós como um blockbuster de Hollywood. A desgraça é
anunciada e mastigada sem repararmos na extraordinária beleza de termos produzido muito menos
dióxido de carbono nestas semanas de pânico. Há sempre uma nova camada de pele por baixo da
pele que efetivamente vemos.

Falta-me hoje, apesar da barbearia, a quietude das lojas antigas e sobra-me, infernal, este
círculo em que continuamente rodamos. Ora são mais dois infetados para a mesa ali do canto.


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