O que faz falta



Nestes dias de chumbo dados ao medo e à ansiedade é vulgar que se reflita sobre a vida, sobre o que realmente im

porta, sobre as coisas pequeninas que, afinal, eram grandes! Estes dias de chumbo são propícios à epifania individual e coletiva, tão bem plasmada no fim dos noticiários em que os pivôs televisivos a praticam com assinalável desvelo. E fazem-no com um misto de olha p’ra mim mas também, suponho, com a genuinidade própria do medo. Evito ainda assim, por cautela, o final dos telejornais.

Tenho também evitado o ócio com a mesma disciplina com que evito o vírus. Depois dos primeiros dias de confinamento serem de tal forma confusos que não consegui arranjar método, já o descobri agora. E de tal forma tenho estado bem no método ... que já tenho trabalho atrasado. A rotina é fabulosa para dar sentido ao ócio. Reconquistei, pelo método, o prazer de ver séries e filmes. The English Game e Unorthodox, séries recentes da Netflix, são mesmo muito boas. A primeira sobre o nascimento do futebol na Grã-Bretanha, a segunda, excecional, sobre uma comunidade de judeus ortodoxos de Brooklyn, Nova Iorque, com ligações à bela cidade de Berlim. Que, diga-se, me faz imensamente falta não conhecer.

Faz-me falta o ócio proibido. Faz-me falta a transgressão de fazer uma coisa quando deveria estar a fazer outra. Faz-me falta Berlim e uma espreitadela turística num bairro judeu de Nova Iorque. Fazem-me falta os concertos. Faz-me falta o Kiwanuka, a 9 de maio próximo, no Palácio de Cristal. Faz-me falta a Marem Ladson num concerto ultrassecreto da Capivara Azul, como são os bons concertos. Fazem-me falta as pessoas, mesmo os imbecis que estacionam em segunda fila para ir tomar café. É provável que esses imbecis andem, por estes dias, com aqueles cãezinhos de brincar e mudam de passeio quando por eles passo e cravam os olhos na calçada para evitar um bom-dia que, por estes dias, gosto de desbaratar para me sentir em comunidade. A epidemia reforça, como é bom de ver, a idiotia. Fazem-me falta as pessoas de quem gosto, sem máscara, de as abraçar, de me rir com elas, de as fazer rir se possível. Faz-me falta combinar coisas e jantares dentro dessas coisas para quebrar a rotina irritante de que sinto (estranhamente) falta. Faz-me falta abraçar mais as minhas filhas, não que eu seja dessas mariquices, não senhor, mas a impossibilidade torna aguda a ausência de uma cabeça sonolenta encostada no meu ombro, como se ainda fossem crianças. Sobra-me, felizmente, a Ana para o fazer. Há que cumprir o prometido: amar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Fazem-me falta as minhas aulas de ginástica, o Pilates e particularmente aquela aula de localizada logo pelo início da manhã na companhia de três pendulares colegas, em que dou o meu melhor para as acompanhar. Não sei o nome delas, mas farei seguramente questão de o saber quando retomarmos a tarefa. Faz-me falta a conversa de circunstância em que me adapto ao interlocutor. Essa circunstância vazia em que mantemos vivas as palavras como bolas de sabão prestes a estourar. Em que se aguentam no ar palavras frágeis e insignificantes, muito diferente desta circunstância plúmbea que se dirige no sentido da gravidade de Newton, na gravidade das coisas. Faz-me falta o barulho, a confusão, a fila para comprar cerveja no concerto dos New Order. Faz-me falta saber afinal como está o meu colesterol. Infamemente postergado para mais tarde, pela situação.

E é por estas alturas – em que caímos pela escadaria abaixo, mas ainda longe, muito longe, do fim da queda – que eu renovo a minha devoção à liberdade e à democracia. À informação livre, mesmo que aqui ou acolá com laivos de melodrama. Escusada: já que a realidade fala por si. Vejo a China, vejo a Rússia, a Turquia, e mesmo até a esquizofrénica Hungria e irritam-me. Vendem verdades paralelas e açaimes. Vejo o Trump e choro interiormente a fanfarronice patética e irresponsável dos americanos. Vejo a Europa perdida e acredito, mesmo assim, que será possível. Somos irmãos que diabo, quando muito primos. Não podemos dar-nos ao luxo de não estarmos juntos. E já bastaram os ecos da última crise: mais nacionalismo, mais extremismo que, mesmo rejeitando os princípios democráticos, se sentam na cadeira da democracia para a sabotar. E mesmo aqui, ao nível político, a procissão ainda vai no adro. Depois das precoces ejaculações dos primeiros dias é só esperar. Os extremismos estão à espera que a coisa fique pior, fique insustentável, para aí sim, perante um pasto de desolação, nos tentarem pôr uns contra os outros. Para esses tenho a minha vacina particular há muito: acredito piamente na democracia, na tolerância, na liberdade, na solidariedade social.

Não sou, por agora, dado a epifanias. A última que tive foi já tem 12 anos.
E se não sou dado a epifanias, mesmo por estes dias tristes, é porque já tenho idade suficiente para perceber o que realmente importa. Estou convicto disso. As coisas que me fazem falta sei - de há muito - que me fazem falta. Hoje são mais pesadas porque ausentes, apenas isso. Descobri uma
vantagem de envelhecer? Será isto uma epifania? Espero que não, pois tenho muito que fazer.


terça, 07 abril 2020 22:56 em Opinião

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