O slow



O slow tem vindo a desaparecer das pistas de dança. Lenta, mas inexoravelmente.


E o slow era um acontecimento em qualquer festa adolescente ou pós-adolescente como as que frequentei quando, precisamente, tinha a idade para as frequentar. Era uma espécie de momento da verdade. Já tinhas dançado todo o disco, todo o funk, toda a pop alternativa nas melhores das festas, já tinhas lançado o olhar matador à rapariga dos teus (mais imediatos) sonhos, ou mais do que um olhar (não fosse o destino pregar-te uma partida), e chegava a hora do slow. Um frenesim mudo percorria a sala inteira, ou a garagem: esse paradoxal frenesim não necessitava de décor. E aqueles primeiros segundos eram decisivos, não se davam a grandes hesitações. Ou avançavas na direção certa ou estavas tramado. Só se ela teimasse esperar por ti e rejeitasse convites prévios. O que, está bom de ver, era um risco demasiado elevado.

Peter Handke escreveu sobre a angústia do guarda-redes no momento do penalti, eu era mais a angústia do marcador do penalti. Ou marcavas ou não marcavas. Tão brutal quanto isso.
Se a coisa corria bem – mesmo com a mania de que era alternativo-, lá estava eu a dançar, com grande enlevo, o How deep is your love, ou o Wonderfull Tonight do Eric Clapton, ou o We’re all alone da Rita Coolidge, como um grau, não desprezável, de hipocrisia musical. Mas a coisa
funcionava mesmo assim. Mais tarde apareceria, para mim, o slow de todos os slows: True dos Spandau Ballet. Um leve beijinho no pescoço da rapariga dos meus (mais imediatos) sonhos, ela apertou-me um pouco mais, isto está a correr bem. Quando os Bee Gees repetirem how deep is
your love vou beijá-la, está decidido.
Muitos namoros nasceram assim e alguns deles duram até hoje. E bem.

Penso que a minha geração foi a primeira a abandonar o clássico pedido de namoro: Queres namorar comigo? Ou para os espíritos mais simples: Queres namorar para mim? O slow era então o relvado do namoro, por mais fútil e curto que ele – o namoro, não o relvado - se viesse a revelar.
O pedido de namoro não estava com nada. Era confrangedor fazer-se a pergunta. No slow tudo fruía, ou não!
Aliás só pedi namoro uma vez na vida. Foi na Póvoa, a uma rapariga do meu setor. Uma rapariga linda, diga-se. E ela disse-me que ia pensar. Notável. Teríamos 15 anos mas uma agenda muito complexa. Ora tu pediste-me namoro e eu não posso, pura e simplesmente, dizer que sim ou
que não. Vou analisar. Namorar era então, suponho, uma ciência. Senti um alívio enorme com a ausência imediata de uma resposta dela, pois se ela me dissesse que sim eu não saberia o que fazer.
Ela demorou um dia ou dois para me dizer que sim e eu, burro, ainda não sabia o que fazer com aquela resposta. A adolescência só é realmente bonita quando, como hoje, se olha para ela de cima da colina da idade. E, hoje, da minha colina já consigo ver muita paisagem. Se fosse de perto era
pior.

Como já não pratico a religião das discotecas há muito tempo creio que o slow desapareceu de todas. No meu tempo ainda havia algumas discotecas com slows. Pretendia-se assim replicar, numa escala mais sofisticada, os encantamentos das festas de garagem. Os Connection, amigos meus organizadores de festas, tinham, lembrou-me outro amigo da trupe mais alargada, dois momentos de slows. Sabiam-na toda aqueles macacos! Haviam os slows das 2 e tal, caso houvesse algum constrangimento de horário que fosse preciso atalhar, logo ali, e havia outro momento, suponho, lá para as 5. Ou seja, dava-se sempre a oportunidade para corrigir o penalti mal marcado ou, nos casos mais felizes, para aprimorar a marcação inicial.

A música é, sem dúvida, a mais completa realização do espírito humano. Todas as outras artes são prazeres muito individuais. A música, pelo contrário, ganha mais sentido com o outro, como num slow. Ainda o pratico sem a angústia – outrora presente - de poder levar uma tampa.
Espero eu. ;)


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