Cumprir um propósito

Numa das minhas últimas crónicas abordei a relação que tenho com os sonhos e referi que por vezes os registo, e que o mais ant

igo que tenho registado data de 5 de dezembro de 2007, tendo terminado dizendo, “Porventura voltarei a ele”.
Não é, porém, desse sonho que vou falar, pois agora apercebo-me da sua desmesurada extensão, mas sim de um outro, bem mais recente, ocorrido na noite de seis para sete de fevereiro passado, apenas três dias após ter escrito a referida crónica. Creio que também assim cumpro o propósito.

Como um bom número deles, esse sonho foi induzido por acontecimento real do dia que precede a noite em que sonhei.
Acontece que no dia 6 de fevereiro, terceiro dia posterior ao da dita crónica em que falei, em abstrato, dos meus sonhos, durante o telejornal da hora do jantar de um dos canais generalistas, que não lembro qual tivesse sido, foi entrevistado o ministro Mário Centeno.
Induzido por esse facto, o da entrevista em si e não do que nela foi concretamente falado, durante a noite sonhei o seguinte:
Como se fosse uma imagem repentinamente projetada num ecrã, apareço numa cervejaria, no Toural, que seria a Cervejaria Martins, embora não fosse tal como o estabelecimento na realidade é. Aliás, tudo ali era diferente mas, sem dúvida, que o local representava aquela concreta e simpática cervejaria.
Pejada de gente, televisão a debitar um qualquer desafio de futebol, bruaá de conversas entrecruzadas mas todos os interlocutores com olhar fixo na televisão.
Eu estava só, encostado ao balcão, voltado para a porta de entrada, quando vejo assomar nela o referido ministro, com o seu ar de sorridente timidez, que olha para um lado e para o outro como que à procura de alguém com quem tivesse marcado encontro para uns momentos de convívio.
Antes que fosse percebida a sua presença, eu, receoso que ao repararem nele os circunstantes, lhe fosse o lazer perturbado, apresso-me na sua direção, enfio o meu braço no dele e, pelo canto da boca que para o efeito retorço, sussurro-lhe ao ouvido – Esteja tranquilo que eu não digo a ninguém que o senhor está aqui.
Ele agradeceu, mas tendo-se os clientes da cervejaria apercebido da presença do ministro no local, sem exceção olharam para ele; porém, nesse momento a cena ficou congelada como se se tratasse de um filme cuja projeção inesperadamente bloqueasse num fotograma, e o fotograma era o seguinte:
Todos os clientes absolutamente estáticos, sem mesmo respirarem, a olhar para o ministro, que, por sua vez, também ficou imóvel como uma estátua, olhando, com o sorriso que nunca largara, para uma espécie de vazio por cima da cabeça de quem se encontrava à sua frente.
Foi então que eu, única pessoa que não perdera o movimento e nesse momento tinha já a dupla função de ator e espectador, pois o eu do sonho estava, tal como todo o cenário, a ser visto pelo outro eu, aquele que sonhava, me desloquei ao longo do balcão e fui junto do ouvido de cada um dos presentes dizer – o Centeno não está aqui; e conforme eu ia dizendo, a pessoa a quem o dizia saída da sua imobilidade e voltava-se para o televisor para acompanhar o jogo que estava a ser transmitido, o qual, talvez por o aparelho não ser gente, não sofrera o fenómeno da imobilização.
E assim, um a um, todos os que se encontravam no bar passaram a comportar-se como se nada se tivesse passado desde que o ministro entrou, continuando as suas conversas e reações à disputa futebolística.
Retirados todos os circunstantes do transe fui a correr junto do ministro que, esse, continuava na imobilidade que havia instantes tinha sido a de todos; abanei-o e ele despertou como quem sai de estado hipnótico, e ambos fomos para o exterior, tendo o eu sonhador reparado que o eu sonhado e o ministro entrámos no Toural em passo pressado e olhando rápida e repetidamente para um e outro lado, semelhantemente ao modo como os toiros de corrida entram na arena vindos do curro onde se encontram antes de serem atirados para a lide.
Então apareceu na nossa frente, aparentemente vindo do nada mas sei que vinha da rua de Santo António, um grupo de pessoas exoticamente vestidas e de cabeleiras excentricamente cortadas, penteadas ou despenteadas, muitos deles com corte à índio dos filmes de cobóis, ou seja, cabeça rapada exceto na sua faixa longitudinal central, esta munida de densa, bem alta e esticada tira de cabelo, desde o início da testa até ao começo do pescoço.
No meio daquela malta que, ao ver o ministro parou numa espécie de contemplação espantada, destacavam-se dois indivíduos, mais velhos e mais altos, um de rosto retangular e outro com um perímetro facial triangular, de braço dado e que pareciam ser os líderes da trupe, tendo-me Centeno dito, apontando-os com o queixo – Olha o Cavaco e o Cunhal!
Olhei e constatei que assim era, embora as feições não fossem as de um nem as de outro, sendo, todavia, significativas deles. Cunhal tinha o cabelo todo esticado para o alto, bem fixo nessa posição por potente laca e Cavaco ostentava, sobre o crânio rapado, uma imponente, verdadeira e vermelhusca crista de galo.
Então, aquele que significava Cunhal dirigiu-se a nós trazendo consigo pelo braço a outra personagem, e disse-nos – este aqui não sabe rir-se.
Respondi-lhe que talvez soubesse (nesta altura começaram a vir, dos lados do castelo em direção à estação de caminho de ferro, uma enorme quantidade de aviões em perfeita formação e, no meio deles, uma espécie de epolhos voadores em que as asas eram enormes folhas de couve galega) só que porventura nunca lhe tinham dito nenhuma piada a que verdadeiramente tenha achado graça.
Ora dê um exemplo, fui interpelado, e de imediato retorqui: - Era uma pessoa tão indecisa, tão indecisa, tão indecisa, que esguichou pelos ouvidos por não saber onde fazer xixi…”
Ninguém se riu e até Mário Centeno abandonou a sua quase permanente expressão risonha, enquanto que os legumes que voavam desataram a cuspir cá para baixo, o que levou todos os presentes a fugirem em debandada, momento em que acordei, ri-me do que sonhara e apressei-me a registar o sonho para que o não esquecesse.
Para quem me ler ao deitar, votos de bons sonhos.

Guimarães,
26 de maio de 2020
António Mota-Prego
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