Viva o futebol

Ultimamente tem-se falado bastante de futebol, tanto pelo que dele tem faltado, como pelo regresso dos jogos de campeonatos oficiais. vários.


O facto reportou-me aos primórdios do meu interesse pela modalidade, seja como espectador ou como praticante, que fixo entre o início da minha vida escolar, aos cinco anos de idade até termo da minha adolescência e início da juventude.

O futebol entrou-me na vida pela mão e ensinamento da mais nova das tias com que fui criado.
Era ela entusiasta do futebol (e da volta a Portugal em bicicleta) e adepta virtuosa do Vitória Sport Club, nome com que nasceu e mantém, mas sendo normalmente chamado de Vitória de Guimarães. E ainda bem, pela ligação que assim é feita do Vitória à cidade e concelho cuja população tão acrisolada e militantemente o estima e apoia.
Tudo começou, mesmo antes de andar na escola, com uns toque de bola na parte mais larga do passeio da rua de Santo António, frente ao 145 da mesma rua, onde eu residia com a dita tia, uma outra mais velha e os meus avós, pais de ambas.
Era a tia de um lado, frente à casa do Dr Torres e eu do outro, no enfiamento da minha casa, recebendo instruções sobre como dar os toques na bola, considerando a diferença entre dá-los com a biqueira ou com a face interior do pé, com ou sem efeito, frequentemente sob o olhar benévolo e meigo do meu avô.
A prática posterior foi em S. Torcato, no então designado terreiro, em intermináveis partidas com a rapaziada da Vila.
A minha tia logo que me viu capaz de aguentar um desafio inteiro, começo a levar-me aos jogos que se disputavam em Guimarães, no campo da Amorosa, em terra batida, isto numa época em que futebol de campeonato e missas de desobriga eram só ao domingo, as missas só pela manhã e o desporto apenas durante a tarde.
A rua, ou melhor dito, o caminho da cidade para a Amorosa era em irregular calçada à portuguesa e tinha início sensivelmente onde hoje conflui a rua Teixeira de Pascoaes, à Quintã, com a rotunda da alameda Alfredo Pimenta, entre os Bombeiros e a esquadra da PSP, onde havia uma ponte em pedra com arco de volta inteira, sobre o denominado rio de Santa Luzia, à época com curso a céu aberto, arco aquele que, pelo S. João, era parcialmente tapado em altura, formando ali um lago onde fundeava uma pequena frota de barcos a remos, que eram alugados para agradáveis e divertidas evoluções lacustres.
A imagem que mais frequentemente recordo dos dias de futebol não são propriamente as da ida nem as do jogo, mas sim as do regresso no termo do desafio.
Com a minha tia emparelhavam, todas de braço dado e ocupando boa parte da rua à sua largura, umas amigas dela, a quem eu chamava as Meninas Lindas, todas solteiras e residentes sensivelmente a meio caminho entre a Escola Francisco de Holanda e o início da rua de Santa Luzia, e, comigo atrás a observar o panorama, caminhavam elas de passo acertado com as saias pendulando ao ritmo das passadas e da correspondente ondulação das ancas.
Creio que foi então que despertou em mim o interesse pela estética.
Com o andar dos tempos e o que fui com isso aprendendo, passei a associar a imagem, e ainda hoje assim a associo, a cena de filme neorrealista do próximo pós guerra. Eram os primeiros anos da década de cinquenta do século passado.
Já moço de liceu e até que completei o sétimo ano, ao tempo o último do ensino secundário, continuei a frequentar os domingueiros desafios de futebol, em que não raro aconteciam disputas de soco e batalhas de guarda chuvas, sobretudo no lado poente do campo, declive em terra batida onde pontificavam os espectadores do “peão”, já que do lado contrário era a bancada, com bancos corridos de madeira em toda a sua extensão, cujos assistentes obedeciam à voz portentosíssimo do Sr Ferreira da Cunha, fundador do estabelecimento do Toural com o mesmo nome, que em momentos adequados lançava o grito que, dizem-me, se ouvia em Caneiros, de VITÓRIA! VITÓRIA! VITÓRIA!, sendo a palavra projetada essas três vezes em altura tonitruante e rapidíssima frequência, desencadeando grande bruaá da assistência como incentivo à equipa vimaranense, que o acolhia e a ele correspondia.
Nesses finais dos anos 50 do séc. XX fez furor o ingresso na equipe de jogadores brasileiros, que levaram ao campo de futebol muitas pessoas que, sem serem propriamente afeiçoados àquele desporto, apreciavam o espetáculo do eficaz jogo rendilhado de fintas e contra fintas, executadas em jeito de samba, que, mais tarde, Pélé imortalizou. Todos os de que me lembro – Caiçara, Carlos Alberto, Ernesto, Edmur – deixaram, de uma ou outra maneira, a marca da sua passagem pelo nossa terra, tendo mesmo os dois últimos decidido tornar-se vimaranenses, ficando a residir e a trabalhar em Guimarães, ambos desaparecidos há não muitos anos e ambos tendo deixado uma boa memória da sua integração e intervenção na sociedade vimaranense.
Porque me veio tudo isto à memória? Por razões paradoxalmente boas e más.
Começando pelas últimas, refiro o negócio milionariamente capitalista, no mau sentido, em que o futebol se tornou, o ambiente conflituoso e falho de ética em que medra, o exacerbado de paixão que em muitos setores desperta, o excesso de importância que lhe é dado relativamente a muitas outras atividades humanas, como, por exemplo, a arte e a ciência, e o modo como, em tantos casos, fomentou a promiscuidade com a política.
Quanto às boas razões refiro os êxitos que cada vez mais clubes e atletas portugueses fazem no mundo do futebol, entre técnicos e executantes, a técnica cada vez mais apurada no domínio individual e coletivo do principal objeto do jogo, a bola, os êxitos com que portugueses contribuem, um pouco por todo o mundo, para o sucesso das equipas e seleções que integram e lideram, os exemplos de desportivismo e camaradagem que ainda vão existindo, entre companheiros de equipa e adversários, os gestos de solidariedade para com o próximo de que são autores membros do mundo do futebol perante catástrofes e adversidades coletivas, de que são exemplo os tidos perante a pandemia em curso, especialmente nos seus momentos mais críticos e dolorosos. O facto de, porventura pelo que acabei de dizer, Portugal ter vindo a ser escolhido para palco de importantíssimas contendas internacionais de futebol, o que considero ser uma honra para o nosso país.
Porém, nada do muito de bom que o, com propriedade, chamado de desporto rei possa ter, nada do que acabo de referir, justifica que ao futebol sejam conferidas honras de estado.
Não gostei de ver o anúncio da escolha de estádios portugueses para as eliminatórias finais do torneio da Champions feito, em cerimónia protocolar, pelo Presidente da República, acompanhado pelos que se lhe seguem em dignidade de representação do Estado, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro.
Ao futebol o que é do futebol, e assim deveria ter sido o representante máximo da modalidade em Portugal, o Presidente da Federação Portuguesa de Futebol, a anunciar o facto. Igualmente tenho por razoável a presença no anúncio, do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, por ser a cidade em que as últimas eliminatórias e a final se disputarão, assim como dos presidentes do Benfica e do Sporting, como máximos representantes dos clubes em cujos estádios aqueles desafios decorrerão.
Quanto aos representantes do Estado, não poderiam faltar, mas não deveriam ir além disso, com a congratulação pela designação do nosso país ou, mesmo, com o recebimento do Presidente da Federação, após o anúncio, para o felicitarem e se dirigem ao país dando parte da satisfação pela escolha de Portugal.
Seja como for, gosto de um bom desafio de futebol e torço sempre, em primeiro lugar pelo Vitória.
Em segundo e terceiro lugar, também.

Guimarães, 23 de junho de 2020
António Mota-Prego
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