Atrás dos tempos, tempos virão



Escreveu recentemente no Facebook o arquitecto paisagista e ecologista Gonçalo Ribeiro Telles, no seu jeito particular, que “A limpeza da floresta é um mito.

O que se limpa na floresta, a matéria orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se? Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade de retenção da água. Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente. A limpeza tem de ser entendida como uma operação agrícola. Mas esta floresta monocultural de resinosas e eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para arder. ... ”. O que, tirando o exagero do mais nada, dá para pensar. Oh se dá!

Até porque dias depois um diário publicava um artigo que noticiava, através da ANP – Associação Natureza Portugal, um relatório da WWF – Worl Wide Fund for Nature (independentemente das faltas de objectividade que possam eventualmente ser imputadas a muitas das suas posições) intitulado: “Covid-19: apelo urgente para proteger pessoas e animais”. Nesse escrito procurava denunciar-se a degradação ambiental que poderia estar na origem das zoonoses e, concretamente e como refere o título, na pandemia actual; lembrando inclusivamente a constante frequência anual com que elas, zoonoses, têm vindo a surgir. E para tal realçava, de entre outros motivos, a desflorestação, a expansão da agricultura extensiva e a intensificação insustentável da produção animal. Num conjunto muito complexo e agressivo de causas que culminava com a necessidade do reconhecimento da conjugação das saúdes da Natureza com a dos animais, mormente a do homem.
Deixando de lado muito desses três aspectos citados, atenhámo-nos tão-somente à desflorestação (ou em gestões que se lhe equiparem, por afirmarem visões duma só perspectiva e demasiado lineares, ao jeito TINA).
Mas, adiante!

Que o problema da desflorestação está ligado a outro que, parece e contra o que já deveria ter acontecido há muito, faz também parte da agenda das grandes preocupações do presente: o premente da água.
Nesse, de muitos interesses económicos envolvidos, a WWF, como muitas outras dezenas de associações ambientais, um pouco por todo o mundo e num clamor que se vem multiplicando, têm vindo a denunciar a crescente insuficiência da água potável e da enormíssima taxa da população mundial que dela está privada, ou acede a uma que não tem o mínimo de qualidade. Para não falarmos já da aridez e desertificação; inclusivamente na Península Ibérica. E se é certo que muito disso se deve a alterações climáticas, não pode actualmente olhar-se para o lado e desconhecer que a acção do homem tem contribuído, e muito, para um acelerar delas. Mudanças que todos os dias nos são noticiadas, as mais das vezes, como factos aparentemente inócuos: a temperatura da Sibéria está 10º C acima da média (e o descongelamento do permafrost e os riscos daí resultantes, viróticos inclusive?); ou, numa demostração comparativa e como se códigos de barras coloridos fossem, os serviços meteorológicos espanhóis e em recente noticiário da noite, mostravam a diferença da temperatura mensal na península entre 1910 e as dos últimos anos, em que no primeiro predominavam os tons azuis (frio), poucos brancos e um que outro raro amarelo e, nos recentes, o dominante era o amarelo carregado, o castanho (calor), poucos brancos e um que outro escasso, e ténue, azul. E a listagem podia continuar por aí fora, do degelo dos polos à pretensa boa nova da anunciada água mais límpida de Veneza (esta esporádica e resultante da paralisação provocada pela pandemia).
Mas, adiante mais uma vez!

Continuando porém na divagação, descendo nela, fixemo-nos no sobejamente sabido ciclo hidrológico. Nele e no conjunto ininterrupto que é, a evaporação oceânica chegada a terra liquidifica-se, ou por vezes solidifica-se, cai sobre ela, escorrendo pela sua superfície e, ou, penetrando na crosta; no primeiro caso segue para as suas origens ou, no segundo, fica retida para ser fruída pela fauna e flora, ou e em grande quantidade, infiltra-se como fonte das subterrâneas.
Escorrência, uso ou depósito, portanto, parecem ser as suas saídas terrestres; a par da, também e sempre, evaporação que ocorre.
Ora e como será facilmente perceptível, quaisquer desses prosseguimentos, saídas, tem a ver com a orografia, composição do solo, clima, pluviosidade e, eventualmente, degelo. Sem esquecer uma sequência desse todo de factores, e não só deles, que é a erosão. Numa globalidade que, como tudo o demais da matéria, é relativa no acontecer da dinâmica processual desta.

Assim e reconhecendo que essas saídas, em abstracto, pouco dependerão da acção humana (exceptuando os sentidos efeitos desta nas alterações climáticas), não se pode esquecer que essa acção em termos locais pode incidir, ou incide mesmo, nalguns aspectos da orografia e sobretudo sobre os solos, em maiores ou menores intervenções; sendo que, estas últimas, pela sua progressão sistemática, podem acabar por relevar significativamente na escorrência e no depósito. Muito sinteticamente, na primeira através de cheias que dependem da pluviosidade e da dimensão da bacia hidrográfica (da sua capacidade para as conter dentro do leito ou extravasar dele); na segunda, por os usos do solo e a destruição da cobertura vegetal, que, ao dificultarem, ou mesmo impedirem, a retenção, também aumentam drasticamente o volume e a velocidade de escorrência, bem como diminuem o depósito.
Aqui velozmente chegados, caiámos no pormenor local.

Num território sujeito a um desordenamento caótico prosseguido na apetência económica de promotores que, com paciência e perseverança, acabam quase sempre por levar a água ao seu moinho, os efeitos dessa política vão começando a suceder. Com resultados que, como se ouve e lê, começam a ser denunciados; como o agora problema da impermeabilização da encosta da Penha que deita para a cidade (será que o PDM em vigor desde fins de Novembro de 2019 não reparou nela?).
Entretanto e num talvez despropósito, não foi que, há umas dezenas de anos para atrás, o Município entregou o projecto de drenagem das duas ribeirinhas que atravessam a cidade (os rios de Couros e o dos Castanheiros), e desta, a uma empresa de Lisboa, que, durante anos, deslocou com assiduidade um engenheiro à cidade para fazer o levantamento e ir gizando, in loco, aconselhamentos e soluções. Solução de drenagem que, como a experiência o ensina, é a que resolve; que não a de paninhos quentes e de remedeio com obstáculos artificiais de contenção.

Mas, a problemática da cidade versus impermeabilização da Penha, não é caso único no concelho, pois, por a sempre chamada à colação dispersão, generalizou-se a um pouco por todo o território (não seria aconselhável fazer o levantamento e computar o total das impermeabilizações levadas a cabo nestes derradeiros quarenta e tal anos?). Com, inclusivamente, a violação permanente do direito privado, ao alterar-se a só obrigação de os prédios inferiores apenas serem compelidos a receber as águas que, naturalmente (isto é, sem qualquer intervenção humana), escorram dos superiores. Ora a infinidade de, desaterros, aterros, infraestruturas, construções a esmo e sem princípio orientador sustentável, na prática, inverteram por todo o lado esse direito e facilitaram, e facilitam, situações que, no futuro, agravarão em muito o erário público; enquanto e desde que se criaram, repete-se o, têm anuído na violação de direitos terceiros. Sem, ainda, esquecer que aquela, a dispersão, propicia um crescente inquinamento das águas subterrâneas.
Não será altura de ter consciência disso e deixar de apostar num fictício progresso que o devir julgará, e onde se pagarão os erros de, os que o permitiram?

Fundevila,
1 de Julho de 2020


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