A mais bela recordação

Quando me lerem, terão decorrido oito dias sobre aquele em fui informado de que a janela

de uma vida se fechara precocemente, sobre mim fazendo cair a destempo o negrume de uma noite sem astros.
Fui sem preparação alguma, e sem que qualquer preparação fosse possível, pois nenhuma o é em tais

circunstâncias, que fiquei conhecedor do falecimento da Francisca Abreu, soldado de várias lutas travadas a meu
lado sempre do mesmo lado da barricada, não tendo as batalhas assim travadas outro objetivo senão o bem fazer
pela terra a que ambos nos demos, razão pela qual a Francisca, a quem Guimarães fez sua, correspondeu fazendo
sua Guimarães.
Não apenas porque, na frescura da sua segunda década de vida, na cidade plantou e viu frutificar, com êxito e
mérito crescentemente reconhecidos, o fruto da nobre profissão de preparar para o futuro cidadãos e cidadãs que na
vida deles percorriam os estimulantes, mas frequentemente difíceis e perigosos carreiros da juventude, mas também,
o que não foi menos importante, pela razão particularmente meritória de dedicar toda a sua imensa capacidade, o seu
profundo saber, a sua energia, a sua imaginação, a tornar Guimarães uma cidade exemplar, como reconhecem, e
estão sempre a reconhecer, as pessoas e entidades a quem está atribuída competência para tal reconhecimento.
Não o fez sozinha, naturalmente, mas, como já foi dito com inteira justiça, foi a alma mater do que se fez.
A sua ação impregnou, e nele permanece, o ar que se respira na nossa terra, esta atmosfera que os
vimaranenses respiram, da qual colhem o orgulho que visivelmente têm em sê-lo e da qual absorvem o doce sabor
de aqui viverem.
Senhora de uma apuradíssima sensibilidade, porventura assente no facto de com enorme coragem e
perseverança ter subido, desde o primeiro, todos os degraus da vida, conseguia vertê-la através das emoções que
transmitia, fosse em palavras de desabafo no sussurrado aconchego de amizades mais chegadas, fosse por palavras
naturalmente afloradas em colóquios, debates, discussões da mais diversa natureza, em discurso que nem por ser
caloroso e improvisado deixava de ser de grande clareza, discernimento e invejável qualidade, fosse – e aí era um
deleite ainda maior ouvi-la – nas intervenções preparadas, fosse qual fosse a solenidade do evento a que a oratória
se destinara.
Tive ocasião de apreciar, e até invejar, como a Francisca, sempre com a mesma qualidade, sabia escolher, se
é que elas não lhe surgiam naturalmente sem necessidade de escolha, as palavras e as frases mais adequadas às
circunstâncias da intervenção.
Assim aconteceu, por exemplo, na Assembleia Municipal de Guimarães, em que a Francisca dizia, por vezes,
exatamente a mesma coisa mas de modo absolutamente distinto, consoante respondesse a uma interpelação ou
defendesse no momento uma decisão da Câmara, ou efetuasse uma intervenção de fundo, previamente escrita mas
com a emoção própria de quem acabava de escrever o que dizia.
Emocionava-se e emocionava o auditório.
Mulher de convicções políticas e filiação partidária, não deixava, mesmo no debate político, suave ou caloroso,
de ser, acima de tudo uma pessoa; convicção não a sabia desprovida de emoção, política não a concebia sem
humanidade.
Essa a sua grande diferença.
Gostava muito dela e, como me disse uma das filhas no sussurro de um abraço que não foi nem nunca seria
de tamanho e estreitamento suficientes, também ela gostava muito de mim.
Foi por isso que, ao saber do inesperado e prematuro fim da viagem da Francisca, senti, como ao início disse,
como se de repente o mundo se tornara breu, raso de tudo porque tudo ruíra à minha volta, tendo-me sentido
inesperadamente só, aturdido e só, aturdido e só e cego a tudo, exceto àquele sorriso imenso e contagiante que era o

dela e que guardarei como a recordação mais bela de quantas as que dela lhe levarei comigo.

António Mota-Prego

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Guimarães, 01 de setembro de 2020


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