O bem mais precioso

Ao abrir um armário à procura de algo que no momento necessitava, encontrei, dificilmente detetável, razão por que a não via há

cerca de 10 anos, uma garrafa de aguardente velha. Não uma garrafa qualquer, mas uma garrafa com história, que me reportou à minha meninice.
Como referi várias vezes, o meu Avô, que acolitado pela esposa e filhas solteiras me criou, era médico com casa e consultório no 125 da rua de Santo António.


Natural de São Torcato filho dos senhores da casa de Corrundela, onde nasceu em 1875, era um jovem médico de 26 anos em 1971 quando, ao final da tarde de dia de fins de junho de 1901, ocorreu em terras daquela freguesia, pertencentes a uma outra casa torcatense, a Casa de Agra, um crime que deu que falar; o do assassínio de Francisco Agra, político cuja influência ia além da local e que foi um dos pilares da sucessiva eleição de João Franco como deputado por Guimarães já que então havia, como entendo que agora devia haver, círculos eleitorais uninominais).
Ao ser descoberto o cadáver e aos gritos de quem o descobriu, acorreram muitas pessoas – que a notícia das desgraças espalha-se mais rápida que as chamas pelo vento – de entre as quais o meu Avô, que fora chamado e rapidamente acorreu ao local, onde logo constatou o óbito, que por falta de sinais exteriores de violência começou por ser atribuído a causas naturais , mas que, despido o cadáver, se verificou ter resultado de tiro com arma de fogo.
A autoria começou por ser atribuída a um tal Júlio de Campos, cujo julgamento não foi isento de algum ingrediente político, que teve por defensor o líder republicano nas Cortes, o tanto amado quanto odiado Afonso Costa.
Talvez que a paixão política tenha criado a necessidade de se encontrar rapidamente o assassino do Francisco Agra, e foi porventura isso que encarniçou uma boa parte da opinião pública contra o Júlio de Campos que, preso e julgado por duas vezes (o primeiro julgamento foi anulado), de ambas foi absolvido por se ter descoberto que, afinal, o assassino fora um tal José de Oliveira, conhecido por Zézinho de Segade, para o que contribuiu a perseverança do então administrador do concelho (cargo administrativo existente naquela época), o meu bisavô, de quem me foi posto e tomei o nome que uso.

Recordo de em criança, em casa, por vezes ainda ouvir, à mesa, conversas relativas ao assassínio, de que apenas retive o nome de Zézinho de Segade, tendo o mais que referi resultado de conhecimentos adquiridos nos últimos pingos de juventude ou até já escorrida ela.
Como médico, o meu Avô era um verdadeiro João Semana. Jamais recusou uma chamada a casa de um doente, muitas e muitas vezes a meio da noite, em que pelas duas e três da madrugada eu acordava ao toque do telefone ou da campainha da porta da rua e me apercebia que ele iria, no carro de praça em que se fizera deslocar quem o chamava ou, se o apelo fosse telefónico, no carro próprio, conduzido pela filha mais nova.
Para além dessa disponibilidade, o meu Avô, ia já munido de amostras clínicas que suspeitasse poderem ser adequadas, as quais deixava para que os doentes, as mais das vezes pessoas humildes, não tivessem despesa em farmácia, e também frequentemente, para além de não cobrar o serviço, ainda deixava aos mais pobres dinheiro para os medicamentos ou, quando não, para uns dias de boa alimentação, pois na altura havia muita doença causada pela mal nutrição.

Acontece que tendo eu feito parte da primeira vereação camarária eleita, cargo que exerci apenas durante o ano de 1977 e parte do ano de 1978, em dada altura desse período houve que decidir sobre a adjudicação dos espaços públicos em que se encontravam instalados os quiosques, um dos quais existia sensivelmente no local, junto à Torre da Alfândega, onde atualmente existe uma oliveira, lugar a que com alguma ironia costumo designar pelo “sítio onde nasceu Portugal”, assim fazendo jus à frase que a fachada visível da Torre ostenta – “Aqui Nasceu Portugal”.
Eu desconhecia em absoluto quem fosse o adjudicatário do espaço, mas, durante o debate que na reunião camarária decorreu sobre a matéria, defendi com veemência uma das duas posições expendidas, a qual apesar da minha vigorosa e insistente argumentação saiu amplamente derrotada.
Um dia, poucos meses depois da ocorrência, apareceu-me no escritório, então no Largo Condessa do Juncal, ainda hoje conhecido como Feira do Pão mas que também ainda lembrado como Feira do Leite (lembro-me de ver lá as leiteiras) um homem com um embrulho na mão, de cuja fisionomia tinha uma vaga reminiscência mas de todo ignorava quem fosse e me diz, o senhor não sabe quem eu sou mas vou dizer-lhe: eu sou quem explora o bar da zona do balcão no Teatro Jordão. De seguida levantou o embrulho apenas o suficiente para que eu o visse, disse:
Venho aqui trazer-lhe isto, mas vou contar-lhe porquê:

Uma vez que eu estive muito doente, tendo mesmo sido temida a minha morte, às tantas da madrugada foram chamar o seu avozinho, que era médico e sei que o Sr Doutor foi criado com ele. Sem se fazer rogado o seu avô veio ver-me a casa, tratou-me naquela emergência e, porque o problema era mesmo grave, não se poupou a visitas até que eu me curasse. Salvou-me a vida.
Nessa altura o sujeito desembrulhou o objeto que trazia embrulhado e exibiu-me a garrafa de que falei nos primórdios desta crónica, contando-me que tencionara oferecê-la ao meu avô, pois era uma garrafa de aguardente velhíssima das caves Aliança, que quando fora parar às mãos dele havia muitos anos, já tinha ainda mais de existência. Explicou que era tão antiga que as próprias Caves Aliança, tendo um museu dos seus produtos, não tinha um exemplar igual, e chegou a propor-lhe a troca dela por bom número da melhor aguardente atual.
Não a dei ao seu avozinho, continuou, porque ele entretanto faleceu (o meu avô faleceu em 1964) e eu, considerando a garrafa uma preciosidade, resolvi guardá-la para a oferecer a quem achasse merecê-la. Ora, soube há dias do empenho do Sr Doutor na defesa de uma posição quanto aos quiosques, sem dúvida porque a sabia justa, mas sem saber a quem aproveitaria, muito menos que me aproveitaria a mim, já que eu era o dono do quiosque junto à muralha no Toural. Decidi então que a garrafa seria para si, como reconhecimento pela sua desinteressada mas corajosa atitude, mas também como modo de homenagear o seu avô, que me salvou a vida e me disseram que tinha por si uma verdadeira paixão. Assim, é como se estivesse a dar a garrafa aos dois.

Comovi-me até ás lágrimas, que procurei disfarçar, já que então não se chorava tão à vontade como hoje.
A garrafa continua intacta e no rótulo, de evidente vetustez, consta, impresso, ser o conteúdo Reserva de mais de 20 anos, e manuscrito, a tinta azul, 1956, porventura o ano em que quem ma deu a recebera.
Contas feitas a aguardente e respetiva garrafa têm hoje pelo menos 94 anos.
Tenho que a abrir, mas gostava de ocasião especial, em que os meus netos pudessem também eles desfrutar do conteúdo já que, sobretudo quanto à neta, de apenas 10 anos, carece ainda do atributo etário que tal lho permitiria.

Gostaria de a reservar para o dia em que calhará, se calhar, o meu octogésimo aniversário, ou seja daqui a três anos e meio. Mas, por um lado porque os seguros de vida não garantem a permanência dela e, por outro, lendo os sinais dos tempos, um dia destes abro a garrafa e, quanto ao neto, agora com 15 anos, já poderá dar uma bicada no néctar; no que à neta respeita, deixarei que ela mergulhe o dedo no líquido e lhe sinta o sabor. Espero que os pais dela também deixem.

Aos meus leitores e às minhas queridas leitoras, respetivas famílias e círculos de relações afetuosas, votos de boa saúde que, na presente emergência, vale bem mais que a preciosa aguardente que, mesmo sem a provar, me inspirou.

António Mota-Prego
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Guimarães, 27 de outubro de 2020


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