Da regressão civilizacional

Sem qualquer intenção de envolvimento na polémica da prelecção da disciplina de Cidadania, a verdade é que a

constantemente ignorada Declaração Universal dos Direitos do Homem carece, e muito, de ser publicitada e, sobretudo, interiorizada. Tanto mais que o espírito ético do trauma pós-guerra que presidiu à sua elaboração, e aprovação, se tem vindo a esfumar, pelo que, no presente, quase que não passa de uma súmula de preceitos de uma desejável moral mundial que nenhum Estado pratica; ainda que só como tendência.
Leia-se-a e compreenda-se-o.

Isto desdenhando posicionamentos preconcebidos por doutrinas assimiladas como as boas, por advindas dos condicionamentos dos sistemas sociais em que cada qual se insira e por induzida, ainda que crida racional e voluntária, opção. Por, assim, noções culturais estratificadas do que é o correcto e o incorrecto ideologicamente.


Nesse contexto aberto, a presunção de inocência que se quereria apreendida por naquela contida (e também constante da Constituição da República como nosso direito fundamental que é), merece a atenção num tempo em que, letra morta, não consegue impor-se aos media que, com a maior desfaçatez e impunidade, a abatem constantemente, lançando juízos de valor e labéus antes do tempo de eles se poderem dizer verificados. E como esse género de notícias tende a ser prato apetecido para uma sociedade ávida de mexeriquices, de vendável soalheiro sensacionalista, é um ver se te avias de acusações e simultâneos juízos de condenação. Assim, difamações e injúrias são letra morta. Tal, talvez e até porque os visados, já numa situação de diminuídos, receiem a eventual confrontação com um lavar de roupa que só poderia aumentar-lhes a exposição. E deste modo se influência a opinião pública, e não só, que, na persistente insistência, tenderá a aceitar o sistematicamente propalado. Tanto mais que, quem e particularmente nos com o múnus de imparcial definição dessas condutas de pressuposta ilicitude, se atreva a discordar desses linchamentos, imediatamente é atacado e passível vítima de suspeições de toda a ordem. Daí a dependência resultante deles, desses linchamentos, ser mesmo real e coactora.

No entanto, aquela presunção prende-se, em estreita conexão, com um direito fundamental do Homem: o da igualdade. Deste modo e sem estar incluída entre as descriminações enumeradas como causas de desigualdades, aonde e por o a que se assiste, se começa a ver que aí deveria figurar, a verdade é que delatados os anátemas virtuais que permanentemente se vão publicitando, a respeitabilidade dos visados fica maculada e mesmo que, posteriormente, lhes seja reconhecida a inocência, os seus direitos ao bom nome e reputação, à sua honorabilidade, ficarão para sempre manchados.

Tudo por não se reconhecer que a presunção de inocência mantem todos os direitos de dignidade civil ao pretenso suspeito até à definitiva confirmação sancionatória dos factos que lhe são imputados. E o definitiva significa isso mesmo, ou seja, até se esgotarem todos os meios de defesa que lhe sejam permitidos e, portanto, a decisão se torne, como regra, insusceptível de reapreciação.

Por o que, só no despudor a que se chegou de a comunicação social se arrogar a ser uma espécie de arauto de verdades que dá como se forem já comprovadas, irrefutáveis, é que e imbuída de uma atitude altaneira, de espírito autocrático, se pôde ter escrito, ao jeito de magister dixit, qualquer coisa como “ainda que sem a certeza da sentença”, num significativo menosprezo de direitos fundamentais dos atingidos, ao fazer-se tábua rasa da presunção e do que corresponde à decisão final.

Não é, porém e portas a dentro, caso único da erosão de direitos fundamentais, pois e como fruto deste tempo, de muitos outros deles e talvez até mais essenciais, caberia versar. O tudo, entretanto, a pressagiar, na anamnésia daquela fala de Marcelo no Hamlet, o diagnóstico de que “Há qualquer coisa podre no reino da Dinamarca”.

Fundevila, 4 de Novembro de 2020.


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