Relatório & Contas



Quando um ano termina é expectável que se analise o ano que finda. Se valeu a pena, ou se foi fraco o exercício.

Coleciono muitas dessas análises a anos passados com algum (descuidado) desvelo, no meio das imensas coisas que guardo e que não me fazendo falta ... podem vir a fazer. Como se eu fosse eterno e precisasse de avivar a minha memória secular. Assim, nas minhas arrumações, encontro, amarelecidas, as análises ao ano de 1993 ou de 2001, ali, imóveis, gastas, inúteis. 

2020 vai ser desses anos ... ou não. Porque, convenhamos, este foi um ano de merda.

O que este ano trouxe não merece ser colecionado. Ele está aí visível e presente. Nos abraços que não demos, nas máscaras que deixam no olhar a ínfima possibilidade de percebermos alguma emoção que as palavras não ditas escondem, na constante desinfeção que fazemos sempre que alguém, inadvertidamente, nos toca. Um ano de medo e da incerteza que esse medo desenrola, interminavelmente, como um tapete gigante. Uma chatice.

Anos estranhos como este, demonstraram que o medo não tem, afinal, imaginação nenhuma. Ficamos sempre mais egoístas quando o intuito é salvar a pele e por isso menos criativos. O espetáculo das vacinas começou agora, iremos ver até à náusea os braços flácidos dos clientes e as primeiras impressões das mentes que habitam os corpos a que os flácidos braços pertencem. Isto para desenjoar um pouco das notícias que há nove meses mantiveram sempre o mesmo conteúdo. Desenjoar por estes dias dos números de infetados e mortos e da inefável Graça Freitas. Menos 4 pessoas nos cuidados intensivos: isto está a correr bem.
Mas por mais que se carregue nas tintas coletivas, o sofrimento – assim como o amor – é uma coisa individual. O sofrimento coletivo é uma abstração mediática. O sofrimento existe individualmente. Cada um sofre à sua maneira. Não há suicídio de baleias na espécie humana. Já passámos essa solidariedade animal há umas centenas de milhares de anos atrás. Somos . que têm particularidades que tornam risíveis as propaladas características da espécie. Como eu que por estes dias particularmente interessado em perceber como funcionam os lagares de azeite mais, muito mais, do que as vacinas e o RNA. Quando me chamarem eu irei, visivelmente satisfeito, tomar a dose que para mim zelosamente guardaram, como o ano de 1989 em revista que eu devo ter algures. Mais do que isso não. E eu que gostaria tanto de conhecer melhor as idiossincrasias da apanha da azeitona fico com a minha curiosidade suspensa. Como numa providência cautelar.

No entanto há gente que não parou para minorar o sofrimento alheio, para travar o tapete gigante que sobre nós se desenrolou. Os cientistas claro. E os alemães, sempre os alemães. Sofro por antecipação a perda de Merkel que disse que iria sair. Se ela fosse portuguesa poderia voltar atrás na palavra dada, mas, infelizmente, não é, e no final de 2021 vai-me deixar órfão, não se recandidata. Sofro por antecipação essa orfandade. Na Europa estamos, por estes dias, como naquelas reuniões natalícias da grande família. Com um conjunto de pessoas que estimamos, com uma avó magnífica, mas com primos traquinas e estúpidos que esperam o momento fatídico em que a grande matriarca adormeça para fazerem asneira e tornarem caótica a reunião familiar. Sinto-me tentado até em abrir uma petição internacional online para pedir a Merkel que continue mais uns anos. Por favor não se vá embora, fique mais um pouquinho connosco. A ausência de adultos na grande sala europeia aterroriza-me. Mas há boas notícias: por estes dias uma minúscula senhora, igualmente alemã, com um nome assustador (Ursula von der Leyen) mas um desarmante sorriso, arrumou os dossiês Bazuca Europeia e Brexit como se nada fosse ... e deixa-nos a casa arrumada e limpa para a grande presidência portuguesa que irá, sem grande surpresa nossa, apostar mais na propaganda do que no trabalho. Às vezes chega a dar pena esta nossa tentação para a fanfarronice. Portugal parece aquele aluno a que não falta esperteza mas é incapaz de estudar. E perde tempo imenso a engendrar esquemas para fazer batota nos testes quando o mais acertado, e mesmo até mais fácil e inteligente, seria aplicar o tempo desperdiçado a fazer cábulas no estudo propriamente dito.

Irrito-me por estes dias com os adversários dos carros. Está na moda darmo-nos ares de muito verdes, mesmo não o sendo. Tenho bicicleta e gosto de bicicleta. Evito-a agora por causa do frio e por força de um equipamento de ciclista de inverno que comprei e usei duas vezes com inegável embaraço. O meu corpo não foi feito para leggings: não combinam com o meu tom de pele. As cidades grandes dificultam os carros por razões compreensíveis. Outras cidades como a minha também lhe dificultam a vida, vá lá saber-se porquê. Eu apesar das minhas verdes raízes fico vermelho de raiva. Andar de carro no centro da cidade de Guimarães cria sensações especiais, muito próximas daquelas que sente uma peúga numa máquina de lavar roupa. Por vezes as peúgas conseguem esconder-se, de forma particularmente notável, entre o tambor e o anti-sifão, nós não. Ficamos ali, às voltas, à espera que o programa acabe. Ponho-me a pensar se no quartel general que define o trânsito em Guimarães não existirão pessoas particularmente maldosas, alisando os pelos de um gato, que se divertem com a nossa aflita mobilidade imóvel. A sua maldade com a falta de espírito cívico de uns quantos condutores tornam a coisa pandémica.
Em Guimarães a menor distância entre dois pontos nunca é uma linha reta, não senhor. Em Guimarães a menor distância entre dois pontos são seis elipses, conjugadas com sete parábolas e duas meias hipérboles. No fundo estão a ajudar-nos com conhecimentos de geometria analítica. Quando os exaustos condutores que atravessaram, qual Cabo das Tormentas, a Av. D.João IV em direção à Estação apanhavam os frescos condutores da Av. D. Afonso Henriques havia ali ciúme. Agora não. A brilhante ideia de fazer desaguar o trânsito do Parque de Camões para a D. Afonso Henriques, conjugado com mais uns imaginativos sinais de trânsito, tornou a avenida igualmente impraticável. Queima-se assim a paciência dos condutores com a diligência com que se queimam embraiagens. Assim ninguém se fica a rir. Que se pensará agora nos escritórios da SPECTRE quando as obras da rotunda de Silvares terminarem e deixarmos de estar sequestrados na nossa própria cidade. Coisas imaginativas certamente ... para não pensarmos que em 2021 é que vai ser.

segunda, 28 dezembro 2020 14:43 em Opinião

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