A turma



Sou do tempo (quando qualquer frase começa assim é, quase sempre, mau sinal) ... dizia: sou do tempo em que se entrava no Liceu

muito novo. Eu entrei no 7º ano com 11 anos, a fazer 12. Entrávamos num local em que existiam outros colegas com barba e bigode e uma má disposição infinita. Eles fumavam com a parcimónia de quem não tem dinheiro para o tabaco, mas, por outro lado, possuíam uma tremenda generosidade para maltratar imberbes como eu. Era preciso ter todo o cuidado e camuflarmo-nos o mais possível para não dar nas vistas, pelo menos até ter 15 anos e possuir já uma estrutura óssea e muscular para ripostar com alguma galhardia. Como sobreviver nesse ecossistema, em particular à fauna que se arrastava colecionando medalhas de chumbo, daria seguramente um excelente programa no canal do National Geographic.

O nosso refúgio natural era a turma. Como éramos espécimes com características semelhantes havia, apesar das diferenças, uma tendência para o gregarismo que provinha do fundamental instinto de sobrevivência. E funcionava-se assim: em grupo. Saíamos juntos, tentávamos entrar juntos. Para os predadores tornava-se mais difícil isolar a presa se o resto dos membros da manada se mantivessem unidos. Assim acontecia connosco.
Lembro-me que no 9º ano levamos a nossa equipa de futebol à final do torneio do Liceu, apesar de haver equipas bem mais fortes do que a nossa. Pelo menos, verdade ou mentira, foi isso que acomodei na minha memória. Perdemos, mas foi excecional lá termos chegado. E tínhamos uma equipa para o fraquinho (estava lá eu!), éramos fisicamente frágeis (apesar do fabuloso e decisivo pé esquerdo do Quintó), mas mais inteligentes que os mais velhos. Éramos, sobretudo, mais disciplinados pelo gregarismo que cedo assumimos. Isto, é preciso dizer-se, num campo de jogos em que cascalho foi semeado em alcatrão com pedras pontiagudas que nos rasgavam as coxas quando caíamos. Só naquele tempo mesmo. Lembro-me do exercício doloroso que era o de tirar as calças à noite, após um desafio, enquanto as feridas não secavam. Pensei várias vezes dormir com elas vestidas. Mas não era higiénico, diziam.

Se virmos bem ... um país é uma turma grande.
Não escolhemos os colegas, alguém na secretaria fez esse papel, e precisamos de saber viver (e muitas vezes sobreviver) com eles. Nesse ano letivo e, possivelmente, nos que lhe seguirão. Quanto mais unidos formos, quanto mais soubermos aproveitar as potencialidades de cada um em prol do coletivo, melhor.
No passado domingo elegemos o delegado da turma e bem pois - continuo a achar - é um bom delegado, tem a noção perfeita da turma e é um rapaz simpático. Não se está a dar, infelizmente, destaque ao significado da sua brilhante vitória num contexto tão difícil como o que atravessamos e com perspetivas muito cinzentas para os exames a que nos vamos sujeitar no final do ano. Mas uma maioria clara de alunos votou nele. Levantamos o rabinho da cadeira e fomos lá dizer-lhe: continua. És o mais inteligente (e ainda assim o mais sensato) de nós. Tens tudo aquilo que um delegado precisa: és bom aluno para receberes o reconhecimento dos professores e tens a rebeldia necessária para em ti nos revermos.
No entanto alguns colegas ficaram nervosos com o resultado de outro dos alunos, achando que todos que nele votaram são tão insolentes e inconsequentes quanto ele. Haverá com certeza colegas desprezíveis no grupo que o apoiou, mas não dá para acreditar que todos assim sejam. Uns porque “vota no Titirica pois pior não fica”, outros porque se sentem excluídos, outros apenas porque estão já fartos da colega que acha que são todos uns burros, exibindo uma superioridade moral insuportável. E foi fácil ao aluno insolente engasgar a colega na comparação de ditadores. Os dela eram naturalmente melhores que os dos outros. Absurdo. Quando o nível argumentativo desce ao nível da retórica do balneário masculino é isso que acontece.
Mas é insuportável, e acima de tudo estúpido, começarmos o ano letivo já todos uns contra os outros a gastar forças no acessório quando o fundamental está assustadoramente à nossa porta. Demasiado visível até.

Nisso estou com o delegado: o problema não são os colegas, mas o ano letivo. Como amenizar os desafios que ele nos coloca, como ajudar o colega que não tem computador e internet e deles precisa para as aulas à distância, como vamos aproveitar em prol do coletivo aquela colega de letra redondinha, diligente e parceira, que cede os apontamentos sempre que a turma necessita? Se nos focarmos nisso poderemos, ainda, salvar o ano e levarmos (quem sabe) a nossa equipa às finais de um torneio de futebol apesar de, sinceramente, não sermos assim tão bons. Mas, mais importante do que isso, o que interessa é que a esmagadora maioria de nós passe de ano. Nem que para isso seja necessário fazer chegar a resolução do exercício aos mais cábulas e ajudá-los a tirar uma positiva. Fraquinha, mas positiva. Mas somos todos do 9ºP e isso é o que importa. E eu, pessoalmente, estou a contar que alguém me ajude a disfarçar a anedota que de mim fiz na disciplina de educação visual. Trato do teu teste de matemática seguramente e tu fazes-me a elipse a tinta da china, combinado?
9ºP carago! Somos os maiores! Nem que para isso seja necessário rasgar as coxas!
E reparo agora que a irritante colega é bem gira, afinal. Nunca lhe prestei atenção por causa das tontas discussões de ditadores, mas vejo agora que ela tem um bonito sorriso e um corpinho que leva à loucura as minhas jovens e desorientadas hormonas. E se eu a convidasse a sair comigo? Talvez fosse boa ideia. Tudo pelo espírito de grupo. Claro.


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