Memórias do passado e memórias futuras

Nasci em fevereiro de 1944, ainda a Segunda Guerra Mundial haveria de continuar a espalhar destruição, terror e miséria durante cerca de mais 18 meses.


Das minhas primeiras memórias fazem parte conversas sobre o flagelo, e durante anos ele foi tema frequente de conversas domésticas, imagens nos jornais e, quando as minhas tias começaram a levar-me ao cinema, talvez a partir dos oito anos de idade, altura em que a sessão cinematográfica tinha três partes, sendo a primeira dos então chamados “Documentários”, a que se seguia um intervalo, após o qual começava a exibição do filme, dividida em duas partes separadas por um novo intervalo, “Documentários” aqueles que, normal, ou mesmo invariavelmente, incluíam um pequeno filme de desenhos animados e um outro de atualidades, de que recordo o “Pathé Magazine” e as “Atualidades Francesas”, que não raro continham imagens da guerra, ou do estado de reconstrução em que as cidades se encontravam, das populações em lenta retoma das suas vidas e recuperação das suas economias, o relançamento das atividades económicas, o regresso de soldados que haviam sido feitos prisioneiros, mostras estas que radicavam no trágico acontecimento que foi a referida deflagração mundial.


Lembro que, andando no primeiro ano do Liceu correspondente ao atual quinto ano de escolaridade, corria o ano letivo de 1954/55, no ginásio que, para esse e outros efeitos era adaptado a sala de espetáculos, foi exibido um filme que mostrava o estado de destruição em que ficaram cidades alemãs, particularmente Berlim, focando-se a câmara sobretudo em pessoas velhas e crianças em estado andrajoso ou perto disso, expressões de profundo abatimento e tristeza, as crianças, quase sempre a chorar, muitas delas aparentando a minha idade de então.
Dessa altura ficou-me a memória de quanto me emocionaram tais imagens, e, com o andar dos tempos e formação que fui adquirindo, apercebi-me que não teria sido por acaso que o filme exibido apenas reportasse o estado material e social da Alemanha e não o de outros países e suas cidades e cidadãos igualmente destruídas aquelas e profundamente atingidos estes nas suas pessoas e vidas, pois que ao Estado Novo então vigente em Portugal interessaria mostrar que os maus teriam sido os que ganharam a guerra.
Durante muitos anos, pode dizer-se tantos quantos duraram as principais operações de reconstrução, fui lendo notícias sobre bombas que apareciam por deflagrar – não há muito ainda foi noticiada a descoberta de uma bomba intacta ao escavarem-se os alicerces para a construção de um prédio, não recordo se em Londres ou em Berlim – e de soldados japoneses que surgiam das selvas do sudoeste asiático ou nelas eram encontrados, julgando que a guerra ainda não acabara.

Vem isto a propósito de, perante as consequências da pandemia que parece, oxalá assim seja, estar a ser ela a confinada, com as pessoas retidas nas suas casas, atividades económicas e sociais paralisadas, hospitais a abarrotar, mortes aos milhões - hoje já vai em mais de duas dezenas e meia sendo dez vezes mais que esse o número de atingidos pela peste – perante tudo isso e o mais que se sabe, inúmeras ocasiões comparei o que nos estava a acontecer a uma guerra, cujas consequências só não incluíam a destruição material que um estado bélico ativo acarreta, sem esquecer que a bomba de neutrões aproxima ainda mais a semelhança, já que atinge os seres vivos poupando, porém, as estruturas económicas – habitações, instalações empresariais e respetivos maquinismos – de que os vencedores da guerra poderão, finda ela, servir-se…
Por isso me pareceu, por vezes, irrealista, a reivindicação de apoios de toda a espécie para minoração das consequências da pandemia, o que nada tem a ver com a solidariedade que me merecem todas as pessoas que por causa dela se viram atingidas na dignidade da sua sobrevivência pessoal e profissional.
Não recordo que algum dos meus interlocutores a quem formulei tal comparação tenha concordado com ela, antes todos, ou discordaram ou, sem dela discordarem expressamente, lhe torceram o nariz.

Pois nessa comparação fico bem acompanhado por António Damásio, um dos mais reputados neurocientistas a nível mundial, que, numa das conferências comemorativas do 31º aniversário do jornal Público, referiu que, logo no início da pandemia, lhe ocorreu que jamais tivera a experiência de viver durante uma guerra mundial, mas, com a Covid, era como se estivesse a viver algo parecido. Conforme relata aquele jornal, na sua edição de 08 do corrente, o cientista afirmou “Há algo muito parecido com uma pandemia e uma guerra mundial, mas no fundo é algo muito pior “.
Iniciei este escrito falando de memórias para agora me perguntar: que memórias serão as da minha neta e do meu neto, agora com 10 e 15 anos respetivamente, acerca destes tempos de privação e medo entranhado que se revela nos olhares desconfiados, ou no mínimo receosos, de rostos escondidos com que os outros olhares igualmente receosos ou desconfiados se cruzam nas ruas desertas de cidades vazias de vida.

Nas guerras, o normal é que os combatentes, durante as batalhas em que intervêm e riscos que correm, não tenham perceção dos seus sentimentos e estados de espírito naqueles momentos. A perceção disso normalmente ocorre depois, e, quase invariavelmente, tão mais nitidamente quanto mais tempo passa sobre o evento.
É isto que me faz voltar à questão: quais e como serão as memórias das crianças, dos jovens, e de quantos mais ainda têm tempo para lembrarem com distanciamento e serena capacidade de análise, estes brumosos tempos que são os nossos?

Guimarães, 16 de março de 2021

António Mota-Prego
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