Portugal obrigatório

Pode ser apenas impressão minha, mas creio que uma boa parte de nós se sente confortável com o facto de termos o vice-almirante Gouveia e Melo

como coordenador do atual esforço de vacinação. As coisas não têm corrido bem, mas, creio, ninguém lhe atribui as culpas pois ele passa sempre a tranquilidade de quem está a cumprir, no melhor das suas capacidades, uma missão.
Alguns militares têm essa aura. Este vice-almirante tem-na e representa aquele pragmatismo tantas vezes arredado da vida política e social: se se recusar a tomar a vacina vai para o fim da fila. Tão simples e acertado quanto isso.

Não possuo, creio, qualquer veia militarista. Julgo, no entanto, ser um erro arrumar os militares a um canto sem a mínima participação da população no esforço de defesa nacional. Não devemos viver subjugados por aquilo que pode acontecer de mal, mas não podemos ignorar a possibilidade. Ter uma população que não sabe disparar uma arma e não faz a mínima ideia de como um exército funciona é, a meu ver, uma temeridade otimista. Israel por razões compreensíveis ou a Suíça por questões de precaução mantêm a sua população num estado de prontidão que lhes permitirá responder a qualquer eventualidade mais dramática. Apesar de na Europa o abandono do serviço militar obrigatória (SMO) ser maioritário, a Suécia recuperou recentemente o SMO e a Noruega estendeu-o às raparigas. Não me parece que os países escandinavos sejam tolos, pelo contrário. Aperceberam-se que vivemos tempos complicados e que a segurança e a independência dos países não são um facto, mas uma construção contínua. Como esses países não embarcam (e bem!) em renovadas cantilenas internacionalistas tratam de defender o que é deles: o seu território e a sua história comum. E, como em tudo que importa preservar, é preciso que cada um cumpra a sua quota parte na manutenção da independência do seu próprio país.

Nada fiz para me livrar do SMO. Não meti cunhas, não arranjei doenças de ocasião, nem me meti pelos (legítimos) caminhos da objeção de consciência pois, em bom rigor, seria falso fazê-lo.
Eu nada fiz para me livrar da tropa e a tropa nada fez para se livrar de mim: incorporado no Regimento de Infantaria de Mafra! Acima de mim, na lista, outros nomes de gente que eu conhecia passaram à disponibilidade. Isso enfureceu-me um pouco, mas que fazer? Siga para Mafra.
A esta distância fico com a sensação que a tropa me enrijeceu e me tirou da cara e do espírito aquela sensação de que era o maior. E não era. O banho de humildade foi incomodativo, mas necessário. Deu cabo de mais de ano e meio da minha vida profissional e familiar, mas foi feito. Tenho um ligeiro, e às tantas pueril, orgulho nisso. Entendi então que servir o país através do SMO era uma consequência de ser português e isso bastou-me para aguentar aquele tempo difícil e que testou os limites da minha resistência física e psicológica, mas, a espaços, novo e de uma formidável camaradagem.
No primeiro dia que cheguei a Mafra para a incorporação éramos centenas de jovens, numa realidade que nos caiu, naquele dia, em cima. Não conhecia ninguém à exceção de dois ou três cadetes com quem tinha trocado impressões durante as primeiras pausas burocráticas daquele imenso quartel. Enfim, mais uma etapa. Cortaram-me o cabelo e deram-me uma farda, vesti-me com os outros camaradas e perfilámo-nos em frente a um espelho gigante sempre com gente a gritar-nos como se tivéssemos feito algo de errado. Era do tipo que eu via em filmes, só que desta vez era comigo e com os meus camaradas. A primeira sensação que eu tive em frente àquele espelho foi assustadora. Olhei o espelho e não me vi. Não me vi mesmo! Éramos todos iguais além de um indivíduo torto e dois ou três manifestamente mais baixos. Ainda demorei algum tempo para ver se me identificava e àquela distância não o consegui fazer. Levantei um bracito a medo e finalmente reconheci-me no meio daquelas fardas e daqueles bonés. Aquilo começava bem. Eu tão especial, era, afinal, apenas mais um.

Leio num jornal diário a entrevista da Ministra das Finanças da Suécia. Exatamente aquele país atrasado que decidiu reintroduzir o SMO. E percebo que Portugal assinou com a Suécia em 2002 uma convenção fiscal para evitar dupla tributação. Assim qualquer português a residir na Suécia pagaria os seus impostos na Suécia, o mesmo se passaria com suecos quisessem viver em Portugal. Nada mais lógico. No entanto a imaginação nacional é sempre surpreendente. Em 2009 decidimos isentar de impostos as pensões dos suecos que decidiram ficar por cá. Zero. Os suecos ficaram horrorizados pelos seus pensionistas não pagarem impostos em Portugal e sentiram-se desconfortáveis com isso, pelo facto de tal procedimento ser uma “injustiça que mina a credibilidade do sistema fiscal”. Com um procedimento autóctone típico decidimos (para tranquilizar os suecos) tributa-los em 10%. Os suecos acharam isso ridículo e, note-se, estamos a falar de receitas do Estado Português e não do sueco! O governo nórdico está há dois anos à espera que o nosso governo ratifique uma emenda, assinada em 2019, à convenção de 2002 e nada. Fartaram-se agora e, com elegância, a Ministra diz achar fascinante que os portugueses entendam este procedimento como normal.
É possível que alguém se entretenha a fazer um vídeo para arrasar (agora) os suecos. A valentia nacional passou rapidamente para as teclas de um computador. Ainda bem que o D. Afonso Henriques não tinha facebook... não me apetecia nada escrever em castelhano.
Adoro este país, quanto mais não seja porque é o meu. Mas vê-lo entretido em expedientes como este, ou em quantificar o preço do papel higiénico que o trabalhador em teletrabalho deve exigir ao garrotado empresário, ou em obliterar a nossa história feita de guerras, sonhos e certamente alguns erros nas guerras e nos sonhos, é algo que me incomoda. Muito.

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