Talvez sociologia

José Sócrates é uma pessoa que, no exercício da atividade política, desencadeou as mais contraditórias opiniões a seu respeito; desde a admiração,

mesmo veneração, sobretudo na decorrência do seu primeiro mandato como Primeiro Ministro, até à aversão mais intensa, não raro ódio confesso e irracional.
Há, porém, que reconhecer que dos contraditórios sentimentos que despertara e, aquando do seu primeiro mandato, pendiam para apoio à sua governação, o de desaprovação foi crescendo com o decorrer do segundo mandato, tendo a animosidade conta ele passado, paulatinamente, a suplantar em muito a aprovação que anteriormente lhe era votada.

A sua personalidade, de tão marcante e vincada que se mostrou, fez dele o campo de batalha privilegiado para conflitos vários que foram deflagrando em importantes setores da vida social e institucional portugueses, assim tendo acontecido nos da política, mas também nos da finança e nos da justiça e entre uns e outros.

Como advogado, profissão que exerci durante cinquenta anos, fui testemunha da evolução, nem sempre positiva, dos fenómenos ocorridos nesse meio século e, por isso, com particular proximidade, nos da justiça. Mas também nos da política e naquele que, por ser o intermediário entre tais fenómenos a o interesse dos seus intervenientes em dá-los a conhecer, se tornou no socialmente mais influente – a Comunicação Social.
A sentença acabada de proferir no caso Operação Marquês fez despertar na sociedade as clivagens instaladas mas há algum tempo em estado de certa letargia, e fez-me a mim voltar ao percurso que publicamente foi dado a conhecer, nomeadamente quanto ao que à Justiça respeita.

Claro que, como em outros casos que envolveram políticos – estou a lembrar o da pedofilia – não posso senão discordar do aparato mediático, que, se não foi necessariamente induzido pela autoridade judiciária que a eles presidiu, não deixou de ser por ela consentido e aproveitado.
O recato da investigação e a discrição da prática de atos suscetíveis de humilharem ou degradarem a imagem das pessoas que tais atos visavam, eram, nas minhas primeiras décadas de advocacia, apanágio dos órgãos judiciais e jurisdicionais e, nomeadamente, das magistraturas, a Judicial e a do Ministério Público.
Semelhantemente, as discordâncias quanto à interpretação e aplicação das leis eram, e as mais das vezes ainda são, expressas entre os profissionais da Justiça sem adjetivação desnecessária e, se necessária esta, com o respeito devido à opinião contrária, por mais discordância que esta merecesse. E desde que se queira – e se tenha formação mínima para tal – não é difícil conciliar a expressão da mais absoluta discordância com um modo delicado de o fazer.
Tenho pena que assim não tenha sido em inúmeras etapas e vários momentos do caminho até agora percorrido pela Operação Marquês.

Não menos me penaliza a maneira como boa parte da comunicação social e tantos dos seus comentadores se arvoram em juízes das decisões dos que as proferem e dos despachos as promovem e, só porque as umas e outros não são aqueles que esperavam e que, dados os abundantes preconceitos contra políticos e financeiros, só poderiam ser idênticos aos julgamentos já feitos na praça pública.
Pode uma decisão judicial causar perplexidade, como vem sendo noticiado ter sido a proferida pelo juiz Ivo Rosa, julgando não suficientemente indiciados inúmeros crimes imputados a José Sócrates e seus coarguidos, assim como prescritos outros, perplexidade a meu ver desproporcionada, pois esquece que foi confirmada a acusação por diversos e gravíssimos delitos, alguns deles suscetíveis de pena até 12 anos de prisão.

Outros, como vários de corrupção, foram dados como suficientemente indiciados mas sem que a acusação quanto a eles fosse confirmada por, entendeu Ivo Rosa, se encontram prescritos.
Esta decisão de prescrição tem sido alvo das mais violentas críticas, esquecendo uns e ignorando outros que o entendimento do juiz quanto a essa matéria não é exclusivo dele e foi já objeto, em outros casos, de decisão idêntica por tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional.
Esquecendo uns e ignorando outros que nos tribunais é mais que frequente a existência de opiniões e decisões absolutamente contrárias quanto a uma mesma matéria, de que dou como exemplo processos em que intervim em que a decisão do Tribunal da Comarca foi revogada pelo Tribunal da Relação e a deste, depois, revogada pelo Supremo Tribunal; assim como processos em que foram no mesmo sentido as decisões do Tribunal da Comarca e, em recurso, a do Tribunal da Relação sendo, no Supremo Tribunal, a decisão definitiva no sentido inverso (refira-se que atualmente sendo idênticas as decisões na Comarca e na Relação só em raros casos é possível recurso para a Supremo Tribunal); e ainda processos em que, chegados a tribunais superiores e, pela matéria em causa, intervieram todos os juízes, mais de vinte, desses tribunais, a decisão foi tomada por pequeníssima maioria.
Esquecendo uns e ignorando outros que a decisão de Ivo Rosa não é definitiva, pois não condenou nem absolveu nenhum dos arguidos, sendo reprovável a posição já expendida por todos quantos, com ou sem consciência disto, proferem afirmações como se tivesse já havido condenação pelos crimes cuja acusação foi confirmada e absolvição por aqueles cuja acusação não colheu confirmação.
Não, não houve nem absolvição nem condenação: apenas decisão, que não é definitiva e já se sabe que será objeto de recurso, no sentido de que os arguidos sejam remetidos a julgamento por vários crimes, e não por outros de que estão acusados, decisão que dificilmente se manterá tal como foi proferida.
Apenas mais três reflexões:
Comungo da opinião de quantos defendem uma profunda revisão das leis processuais criminais, privilegiando a separação de processos autonomizáveis, ainda que com conexões entre eles, evitando-se a existência de megaprocessos, proteladores da justiça e, não raro, dela denegadores, dado o seu gigantismo.
Entendo que deve repensar-se a matéria atinente à prescrição de determinados tipos de crime, incluindo, a par dos de especial perversidade, os contra a humanidade e os cometidos no exercício de cargos políticos.

Deteto na sociedade em geral uma tendência para o conflito, fenómeno porventura com raízes sociológicas, o que poderá explicar – os sociólogos o dirão, ou já disseram mas eu disso me não apercebi – a animosidade latente contra os políticos em geral, entre poderes constituídos como são o legislativo, o executivo e o judicial, e dentro de em cada um deles mas com especial relevância no último, pois, mesmo que tudo o mais falhe, será na independência e virtuosidade da Justiça que assentará a regeneração dos demais poderes e a sobrevivência da democracia, bem supremo das sociedades que se querem civilizadas.

Guimarães, 13 de abril de 2021

António Mota-Prego
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terça, 13 abril 2021 19:02 em Opinião

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