Montar coisas

Eu não tenho propriamente saudades das coisas do antigamente por comparação às coisas de hoje. Adapto-me aos tempos modernos com, diria, uma certa facilidade.

Chego inclusivamente a ficar extasiado com as potencialidades que a tecnologia hoje nos abre. À possibilidade absolutamente louca de em minutos resolver um problema, obter uma resposta, que há umas décadas atrás me demorava horas a fazer, senão mesmo dias.
No entanto há uma coisa que me tira do sério: as coisas vêm sempre, ou quase sempre, por montar. O que - para mim que não sou dado a puzzles - chega a ser penoso e mexe com particular ferocidade com o meu sistema nervoso.
Sou capaz de aguentar situações complicadas, sem vacilar, que tenham a ver com o domínio emocional, ou mesmo em questões retóricas complicadas raramente perco a calma ou o foco. Agora o “montar coisas” torna-me, em instantes, um perigoso troglodita, capaz de verbalizar com uma rapidez impressionante um conjunto de palavrões e outras imprecações e despertar em mim uma sanguinolência que põe em risco a coisa que me coube, por infelicidade, armar.

E tudo me surpreende. Já percebi, desde há muito, que o IKEA me faz mal à saúde. E tudo começou pelo berço da minha filha mais nova. Nas outras duas filhas a coisa ainda era à base de compras a cama e trazem-te a casa já montada, com a mais nova tive de ir com a corrente e comprar uma coisa para montar eu próprio. E montei só que o lado amovível da caminha ficou estranhamente vitalício e naquela posição em que a cama não está aberta, nem fechada, ficou a meia haste em fúnebre homenagem à minha incapacidade ... até ela sair finalmente daquele berço que, em bom rigor, nunca a confinou. Pudera. A mim, inclusivamente, sobram-me sempre peças. O que, dizem os entendidos, é um mau sinal.
Mas ontem o meu nível de surpresa elevou-se mais um degrau. Comprei uma bicicleta online e quando esperava que ma entregassem lustrosa e impante ... sr. Costa aqui está a encomenda e quando olhei vejo uma caixa paralelepipédica que, está bom de ver, não se assemelhava nada ao produto encomendado. Tentei, tento sempre, mas vi que aquela coisa que havia montado - já encharcado em suor, mais pela tensão do que pelo calor-, se assemelhava mais a um toiro esquelético do que propriamente a um velocípede. Fui à marca e um rapaz de nome Marco pôs-me a coisa igual, ou ainda melhor, ao produto que eu tinha encomendado. Apeteceu-me abraçá-lo. Não o fiz por causa do corona, mas disse-lhe que era aquilo que me apetecia ter feito.

A vontade das empresas que vendem coisas eliminarem mão-de-obra é um ato demencial e que faz mal a todos. O valor do trabalho de alguém é sempre postergado em prol do preço e da rapidez. Acho que é isso que marca verdadeiramente a nossa época. Até para pagar existem agora máquinas a guiarem-nos a compra. O sonho de muitas empresas é não terem ninguém na loja à exceção dos clientes. O fator humano é, cada vez mais, um empecilho. Não demorará muito até que chegue o tempo em que, nós próprios, teremos de extrair o óxido de alumínio para purificar e, finalmente, fazermos a almejada bicicleta. Era só o que me faltava.

A Operação Marquês tem também peças a mais. Notáveis juristas, Ministério Público, polícia de investigação e dois juízes que a mais delirante ficção não conseguiria inventar, continuam há anos a montar e a desmontar peças de um processo que bate o puzzle da Kodak, com 51300 peças, a que designam pelo maior do mundo. E não se entendem, pois, cada um tem a sua verdade. Uma estimável verdade certamente para cada um deles e para a sua circunstância.
Felizmente vivemos num país livre e a grande infeção Sócrates pode livremente falar da sua verdade, exasperar-se e continuar sem responder a nada de substancialmente importante. Cada vez que ele nos brinda com a sua indignação mais se percebe aquilo que se deveria ter percebido há muitos anos atrás (e com muita facilidade!): o embuste, a patológica falta de vergonha e de empatia para connosco, para com aqueles que sofrem as consequências dos seus incontáveis esquemas.
Mas quem sou eu para criticar? Eu que ingenuamente acreditei no ciclista Lance Armstrong durante tanto tempo.
Consola-me, no entanto, hoje, que já tenho a minha bicicleta montada por um profissional, um pequeno e vingativo pensamento: gostava eu de ver o Armstrong subir a montanha Penha, mesmo dopado, em cima de uma bicicleta montada por mim. Isso é que era assunto! Ou mesmo até o Sócrates. Mas esse preferencialmente a descer.

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