Calceteiros



Tudo volta lentamente à normalidade. O que descobrimos no silêncio do medo – as coisas que verdadeiramente importavam, dizia-se então – já nada interessam afinal.

À medida que a vacina faz o seu extraordinário caminho, os hábitos que jurámos jamais repetir, são, afinal, repetidos com uma surpreendente constância.

A impaciência voltou com particular força e toda a espiritualidade com que, momentaneamente, nos revestimos nos dias do medo, evaporou-se. As ruas e as estradas enchem-se novamente de carros e de imprecações que há muito não ouvíamos. Até o médio oriente voltou a ser médio oriente. Back in business, outra vez.

A horda do futebol regressou com particular violência e particular vigor, como se o futebol fosse afinal coisa digna do interesse generalizado, como se o futebol fosse coisa central da nossa existência comum, ao contrário da amizade, da solidariedade que, há uns meses atrás, jurámos serem esses os nossos particulares e importantes propósitos. Cansados de deixar o palco mediático a treinadores apopléticos, sempre muito indignados com as arbitragens, com os adversários, com a falta de sorte, ou a jogadores que juram que é necessário levantar a cabeça e seguir em frente, os adeptos regressaram à rua com o viço das andorinhas vindas do Norte de África. E chegaram em força, pujantes, com saudades de um bom desacato e das ruas de Portugal, outrora tão vazias e poéticas porque vazias. E com elas – as hordas, não as andorinhas – regressaram ainda os polícias do corpo de intervenção, pagos pelos impostos de todos, revestidos a teflon, para serenar os ânimos de alguns, na vã e fútil tentativa de impor uma espécie de ordem pública. A tal ordem sobre a qual ninguém tem, afinal, qualquer legal responsabilidade, muito menos o inefável Cabrita, mais impante que o medonho obelisco de Oeiras, com significados tão fortes e importantes que qualquer reles sem avental não consegue atingir. Regressou assim a Portugal, esplendorosa como era seu hábito, a doença da bola, enjoativa como sempre e sem um pingo de espiritualidade.

E quando o arreliante entretenimento do número de infetados já não entretém assim tanto, a realidade inventa-o. Desfilam agora pela Assembleia da República senhores engravatados, os senhores doutores caloteiros, dos quais nos rimos para não chorarmos. E de nada se lembram, coitados, enquanto nós, os que vão pagar as suas infelizes dívidas, teremos que nos conformar com o espetáculo de um Alzheimer tão contagioso como a Covid de que nos vamos igualmente esquecendo.
E se os deputados se espantam, e se nós com eles nos espantamos igualmente, ficamos para aqui, impotentes, com os sagrados direitos de distintos vigaristas que não compraram (afinal) nem aviões nem iates, e que tiveram apenas o azar de confiar no tio Ricardo. Enquanto isso, a Justiça entretém-se com ela própria, e a caravana passa, pois tem que se respeitar escrupulosamente o prazo e o direito e a presunção de inocência. Uma justiça literalmente cega, entretida com o articulado, pouco atenta à substância e ao dano irreversível que a sua cegueira a todos causa. Preparemo-nos então, para diligentemente taparmos os buracos das ruas abertos pelos adeptos de ocasião e as crateras das finanças públicas abertas pelos finórios do costume.

Deveria, assim, haver em cada um de nós um calceteiro, ou pelo menos uma alma de calceteiro. Ajoelhados, na prece dos dias, a remendar a calçada, a colocar o cubo granítico no devido lugar, a tapar buracos que o pessoal da bola e dos negócios nos deixa por tapar.
E quando Guimarães se esventra e as obras demoram medievais eternidades, porque, parece, já não há calceteiros suficientes, era bom que de marreta em punho e prumo por perto, aprendêssemos a arte tão nobre de tapar buracos. Uns atrás dos outros, hipnotizados pela função, mas calmos, sempre calmos e sobretudo diligentes. Talvez assim fossemos afinal mais felizes e não cedêssemos à impaciência que, furtiva, sempre espreita. Porque, convenhamos, a espiritualidade é funesta e amolece os nossos corações graníticos.

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