Códigos



Em muito pouco tempo fomos submergidos por códigos. Primeiro foram os cartões de débito e de crédito e, passado muito pouco, não há nada que se faça sem um login e a respetiva password.

Dizem que é para facilitar. Até acredito, mas a facilitação tornou-se uma moda obsessiva. Resta-nos ainda comprar o pão sem necessitar de meter um código. Até quando?

Seguindo uma recente recomendação, decidi mudar muitas das palavras passe da maioria das contas que tenho. E aviso: é uma tarefa extenuante!
Eliminei dezenas de registos que estavam memorizados no browser, mas ficaram ainda mais umas abundantes dezenas. Modifiquei as palavras-passe mais sensíveis, mas a tarefa foi de tal forma extraordinária que desisti, quando umas boas duas dúzias de registos foram por mim alterados. Os mais importantes, supus. Reparei – com algum sonso espanto - que toda a minha vida está registada e monitorizada de forma avassaladora. Tinha uma vaga ideia disso, mas tanto não imaginava.

Recordo que nos primeiros cartões bancários só existia – e estranhamente isso ainda hoje se mantém – um código de quatro dígitos. Mesmo assim, perante a novidade e a difícil tarefa de decorar um código assim tão simples, havia cidadãos que guardavam ciosamente na carteira esse mesmo código que consultavam parcimoniosamente quando iam ao multibanco, o que fez, diga-se, a delícia de muitos meliantes.
Devemos ter no nosso cérebro uma parte que gosta de guardar códigos, ou, pelo menos, que tem essa delirante potencialidade. Só assim se justifica o facto de, há umas décadas atrás, decorarmos tantos números de telefone e tantas matrículas de carros, com uma enorme precisão. Hoje sei o meu número de telemóvel e a matrícula do meu carro ... depende dos dias. Na verdade, a quantidade de códigos do telemóvel, do computador, da televisão, da loja tal, da loja qual, do cartão de cidadão, das finanças, da segurança social, do sistema de saúde, é de tal forma alucinante que só utilizando o mesmo código as coisas poderiam ser manejáveis. Mas nem assim. Agora exigem que tenha uma maiúscula, uma minúscula, um cardinal, mais uns quantos números, até um ponto que já não dá para recordar nada. Ou seja, o sistema de códigos que nos são exigidos hoje precisaria de um sistema próprio que a nossa massa cinzenta não é capaz de produzir.

No feliz tempo em que as pessoas tinham poucos códigos para decorar, a matriz pessoal do código não andava muito longe da data de nascimento, a data de casamento para os mais apaixonados, o nome do filho, o nome do cão, mas tudo se complicou tanto que seria necessário um algoritmo pessoal para dar resposta a tanto código sem repetir o mesmo. Tenho um amigo que, na instituição financeira na qual ainda hoje trabalha, só tinha palavras-passe em forma de um palavrão, e dos pesados! Contou-me que várias vezes era solicitado por colegas que, por questões profissionais, tinham que aceder aos seus ficheiros e lhe pediam autorização para a utilizar conta e a respetiva palavra-passe. Quando ele dizia finalmente a palavra mágica do outro lado ficavam indignados, julgavam que ele os estava a insultar, até perceberem que a palavra era mesmo aquela. Com alguma diplomacia, contou-me, pediram-lhe para mudar o seu imbatível algoritmo. Não sei se, entretanto, o fez. Mas conhecendo como o conheço é provável que não tenha mudado só pelo prazer de dar a resposta.

O esquecimento pessoal dos códigos cria alguma angústia que vai para além do facto em si. Não fosse eu lidar com gente nova (que também se esquece dos códigos) e pensaria que o meu esquecimento era um problema de idade, mas não é. Nisso somos como os computadores: quando estamos cheios de informação ficamos mais lentos. Apenas isso.
Inundados de códigos caímos num paradoxo securitário, pois na impossibilidade de decorar tudo confiámos nas ferramentas digitais que nos guardam o que não conseguimos já decorar, tornando assim todo o sistema mais vulnerável do que na era pré-código.
A nossa mente assemelha-se, dia a dia, a uma bolsa de senhora, onde é impossível encontrar o que quer que seja além da própria bolsa em si. Daí esta constante má disposição coletiva. Mas tranquilizemo-nos: o defeito não é nosso, mas sim da insana tarefa em que nos metemos. Acho eu.

terça, 15 junho 2021 16:41 em Opinião

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