Nem tudo o que reluz é oiro



Em tempos que já lá vão, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra detinha uma plêiade de jurisconsultos de se lhe tirar o chapéu. E dentre esses um havia que efectuosamente

era cognominado de Vacão. Professor Catedrático esse que, algo confuso na exposição do seu imenso saber, preleccionava a disciplina de teoria geral da relação jurídica ao 2º ano. Teoria geral estruturante para todo o mundo jurídico, genérico ou de quaisquer suas especialidades. E independentemente de outras acepções conceptuais nela afloradas, importa reter a dicotomia de o dever ser (iure constituendo) e o ser (iure constituto). Fundamentais para, no contexto de a prosa estática que é qualquer disposição legal, se a poder ler corretamente ao longo de toda a sua vigência e na consonância com percurso evolutivo da sociedade a que se aplica. Aliás, o saber jurídico acumulado ao longo de milénios nessa área base e primeira das sociedades humanas (porque ela é, desde o início da espécie e aí na sua mais rudimentar expressão, o fulcro de toda a possibilidade de convivência grupal) tem, essencialmente, o fito de uma capacitação para se poderem ler leis. Isto é, assumir a cada momento social de cada uma delas, a melhor solução para dirimir os interesses que a respectiva regra visa tutelar e que dela, do seu texto, se podem intuir; funcionando este, o texto, como um espartilho limitativo inexcedível (o tudo, de certa maneira, fundido nos artigos 9.º, 10.º e 11.º do Código Civil).

Podendo o parágrafo antecedente parecer obnóxio neste escrito e de obscuro acesso para alguns, ele, no entanto e para aferição da intenção da lei, da dos que a ela se sujeitam, ou não e, inclusivamente, das vontades cidadãs unilaterais ou na multiplicidade das relações destes entre si, tem um cabimento crucial para o funcionamento global de qualquer sociedade humana. Mormente se as leis, como se imporia, forem gerais e abstractas.
Por outro lado e sendo as leis gerais e abstractas, logo se compreenderá a necessidade de uma aturada cultura jurídica adquirida, como em qualquer outra especialidade, para se levar a bom porto essa leitura (hermenêutica ou interpretação); leitura nem sempre linear e daí as doutrinas, correntes jurisprudenciais e, inclusivamente, interpretações autênticas, como era o caso dos assentos.
Por aqui ficámos, porque a intenção deste escrito desvia-se desta vaga súmula de considerações. E remete-nos para a democracia, passando pela personalidade jurídica e a subsequente capacidade para emitir declarações de vontade.

Assim, invertendo a ordem do anterior período e começando pela vontade, caímos numa sua prática que consiste em ela poder ser atribuída a terceiros mediante o instituto da representação. Instituto que está devidamente estatuído no direito civil, sendo que aqueles ser e dever ser capitalizam os termos em que a vontade individual remetida para outrem pode, e deve, por este ser emitida. Assim sendo, sempre teríamos que a amplitude do uso dessa vontade deve ser contida na, ou na aquiescência, do representado. Isto é e para galucho entender, não poder ser utilizada ao belo prazer do representante. É que há limites (e no direito civil eles são devidamente acautelados) à decência.
Dito tudo isto, vamo-nos então à Democracia.

O mito da democracia ateniense, ainda que exclusiva dos cidadãos e à organização em que assentava, só pode acontecer em comunidades pequenas. Desde logo pela impossibilidade prática de auscultação de cada um (se na Pnyx se chegassem a reunir cerca de 5.000 daqueles, a minuto para cada um se exprimir, seriam precisos mais de 3 dias ininterruptos para cada consulta). Que dizer pois para comunidades que se foram alargando, até se chegar aos actuais estados-nação, ou à suas federações e uniões? A evidência aponta para que a democracia directa é nestes uma utopia. Há portanto que concebê-la em moldes realistas. E daí a democracia representativa.
Mais uma vez começando pela última noção (que deve compreender um centralismo democrático à la page, com vários escalões decisórios com atributos e competências com eles consonantes, permissíveis de coordenação superior hierárquica não impositiva - excepto para casos pontuais de primordial interesse colectivo - e susceptível, esta, de apreciação e resolução de discordâncias por órgão democrático próprio para as dirimir), não há qualquer fundamento para que se siga um caminho distinto do preconizado na lei civil. Antes até e por maioria de razão, por se tratar de gestão da coisa pública, aquela invocada decência (o tal dever ser) será mais premente.

É que a Democracia, como a Constituição repete incessantemente e com distintas formulações, assenta na “vontade popular”, na “soberania popular”, “reside no povo” e por aí fora. Ora, na democracia representativa, o poder dependente do povo manifesta-se através de eleições de representantes, ou e singularmente, em referendo. Representantes que, supostamente, reproduzem a vontade dos representados, o que para que possa ocorrer carece de proximidade; e recíproca.
Mas será assim?

Ao que por aí vai parece que não. E desde tempos que vêm daquela antiguidade helénica, passando por Roma, o seu império ou impérios (já para não falar em clãs, tribos e povos), a Idade Média, com o seu feudalismo, os reinos e, posteriormente, os estados-nação e mais recentemente galáxias que os englobam, o poder e o seu exercício couberam sempre a elites circunscritas, com origens em: a)- sufrágios mais ou menos restritos; b)- a detenção da força e, ou, atribuição divina; e c)- finalmente, representação popular. Estando-se nesta derradeira fase, seria suposto segundo os princípios anteriormente explanados, que o desempenho da Democracia correspondesse efectivamente à vontade popular nas concretas decisões tomadas sobre a res publica. Porém e para que isso se verificasse, além da já acima referida maior proximidade através de mais escalões decisórios verdadeiramente representativos, seria preciso que os programas dos concorrentes a quaisquer desses escalões fossem suficientemente conhecidos dos cidadãos, quer nas suas linhas gerais, quer em cada uma das suas concretizações, ou quando estas surgissem e que, sobre tudo e sobre quaisquer deles, incidisse ponderada análise crítica e aceitação, bem como a posterior explicação das decisões tomadas. De contrário e com a agravante da tentativa da cada vez maior redução da representatividade (quer pela diminuição do número dos eleitos, quer pela concentração de poderes nos executivos e nestes, mesmo nos órgãos colegiais, pelo afunilamento em personalizações centralizadoras; ao mesmo tempo que as ekklesia existentes vão sendo subalternizadas), o que vai acontecendo cada vez menos se ajusta à desejável representatividade. Ou não será que os cidadãos não são ouvidos nem achados sobre as decisões que permanentemente se tomam e que, no entanto, permanentemente também, influem nas suas vidas? E sem que se lhes dê conta disso! E, entretanto, os representantes ficam com carta branca para fazerem o que lhes der na gana, sem outros freios que não sejam os da clubite.
Será esta situação democrática?

Fundevila,
16 de Junho de 2021


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