Ir a banhos

A relação dos portugueses com o seu próprio país é sempre tensa. Não porque achemos que o país é objetivamente fraco, mas por acharmos que o país poderia ser infinitamente melhor.

Quando tenho oportunidade de viajar e conhecer outros países (que saudades) encanto-me com o estrangeiro, com paisagens e monumentos, com outras culturas e sabores, com uma língua diferente que desenferrujo com prazer, mas passado um tempo (normalmente uma semana) aperta-se-me sempre o coração, com a provinciana saudade do meu país pequenino. Faz-me falta a sopa, o nosso sol, o jornal, as tontices nacionais e, acima de tudo se for verão, o areal onde eu possa meter os pés sem ter de trepar por cima de pedras e calhaus para sentir o mar e nele mergulhar.

A democraticidade da praia portuguesa é um tesouro nacional, tão importante como o Serviço Nacional de Saúde. À parte de algumas exceções, poucas felizmente, o espaço de praia é aberto a todos. Ao rico ao pobre, ao branco ao preto, ao escultural ou ao badocha, a quem chega à praia de Tesla ou de camioneta de carreira, ao intelectual que vê para além do mar ou ao burgesso que nele urina com bovina tranquilidade e alívio. E o Norte, com as indispensáveis barraquinhas, leva a democraticidade ainda mais longe, unindo os banhistas com a praia como se fizesse parte do ecossistema, como o sargaço ou os polvos que se escondem por entre as rochas. O banhista chega às 9 da manhã e parte, contrafeito, mas extenuado, às 7 de tarde, fazendo tudo que tem a fazer sem largar o areal. Ainda há dias, em passeio por volta da hora de almoço, reparei numa fila de barracas nas míticas Caxinas em que toda a gente estava a comer na barraquinha listrada. Como bons vizinhos, e portugueses que são, talvez trocassem mimos e sobremesas, não demorei o meu olhar inquisidor a tanto. Lembro-me há uns anos atrás, ainda universitário, e sob o peso dos exames de setembro, combinei com um amigo meu, um pouco mais a Sul, para ir estudar com ele. Como a vontade era pouca, aproveitávamos sempre o acordar tardio para ir à praia de Espinho. Almoçava então na praia, dentro da barraca ou nas suas imediações, com o beneplácito da família larga e generosa da namorada desse meu amigo. Comida fabulosa, sem mariquices de sandes e saladas: carne assada, arroz de frango, tripas, o cardápio era, enfim, de uma portugalidade imaculada. E vinho, claro. Após o almoço íamos ao café (não porque não houvesse café na barraca, dentro de garrafas térmicas impecáveis, pois também havia) descansar daquela almoçarada e fumar cigarros que nos aliviassem a digestão. Acho que não nos deu grande resultado essa época de exames de setembro. Não tenho, ainda assim, convenientemente a certeza.

Regressei por estes dias à Póvoa, depois de uma (traidora) troca por Esposende. Fui a banhos, naquela praia da Póvoa, desde os meus 9 meses de idade até me casar. Os dias que eu por lá passei darão talvez, todos juntos, três anos da minha vida. Daí eu sentir a Póvoa como um local da minha vida e, apesar das mudanças entretanto verificadas, tudo me é reconfortantemente comum e próximo. Tudo me desperta lembranças dos dias longos no areal, das paixões estivais, dos sorvetes de máquina, dos chocolates da Regina sorteados através de bolas coloridas que, desde logo, marcaram a minha pouca apetência para jogos de sorte, das bolas da Nívea de um azul nívea, do sabor da língua da sogra comida com desvelo enquanto batia o dente após ser fustigado pela enésima vez por aquelas águas inclementes e frias, pelos meninos de calção verde que se perdiam e cujo desaparecimento era anunciado na cabine de som, num tempo em que se perdiam os filhos por haver tantos e tanta gente que dava liberdade para os filhos se perderem, com aflições próprias mas tranquilas de uma liberdade entretanto perdida. E o final era sempre feliz e anunciado pelo locutor de serviço aos transeuntes do Passeio Alegre, ligeiramente apoquentados entre o anúncio do desaparecimento e o feliz reencontro com a mãe que, por vezes, ainda lhe dava umas convenientes palmadas. A cabine de som ainda existe – com um volume conveniente mais baixo, hoje – abrindo e fechando com Ó Póvoa terra de encanto, ondas rolam sobre o mar, debitando os prazenteiros hits musicais dos anos 70 e 80 como se o tempo, entretanto, não tivesse passado. E no fundo não passou, já que o encanto é, para quem o tem, o mesmo. As memórias agarram-se ao tempo passado e tornam-no presente e o Barry White ajuda: you’re the first, my last, my everything.

O país mudou, mas a Póvoa, na minha cabeça, não. O país dá por vezes, e de forma surpreendente, modos de um país a sério, quando a fanfarrona bandidagem nacional se vê confrontada com a justiça. Mas, de outras vezes, continua a assemelhar-se ao país chato e previsível de sempre, um país de queixinhas, em que os ingleses nos barram a entrada e o ministro dos negócios estrangeiros se lamenta da injustiça. Eles lá saberiam, ou simplesmente adivinharam que os festejos do futebol autóctone (268 casos nesse dia: 84 em Lisboa e 88 a Norte), ou, quinze dias mais tarde, a parola Liga dos Campeões no Porto (582 casos nesse dia: 327 em Lisboa e 164 a Norte), iriam desembocar nesta milharada diária de novos casos que fazem o inacreditável Cabrita parecer apenas o menino de calções verdes que, dia a dia, se perde, sem que o pai se rogue ao direito de lhe dar umas convenientes palmadas no rabo. Os ingleses ficaram horrorizados por os termos deixado alegremente entrar, num embevecimento tonto e irresponsável em contradição com todo o esforço feito, pela maioria dos portugueses, até ali. Por isso os sábios ingleses da velha Albion nos fecharam rapidamente as portas, seguindo a máxima de Groucho Marx: não quero pertencer a um clube que me aceite como sócio!
Refugio-me assim, quando posso, em coisas sólidas e previsíveis como a Póvoa de Varzim, a sua areia máscula e a imensidão que dela se debruça. Essa previsibilidade dá-me um extraordinário prazer, mais ou menos parecido com o conforto do sol que nos aquece o corpo, naquele infinito espaço de tempo, mas afinal tão breve, que medeia entre o termos frio e o termos calor. De olhos fechados e calção semi-seco.

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