A mais bela sinfonia

Por vontade e dever não me permito, nesta primeira crónica após o seu recente falecimento, omitir Otelo Saraiva de Carvalho. E fazê-lo apesar de, aparentemente, estar já tudo dito sobre ele.

 

Uns fizeram-no com veneração, outros com ódio, outros ainda com a moderação que tenho por isenta e a sensatez que considero indispensável quando o tema é uma figura que, por mais controvérsia que desencadeie, ficou com o seu nome gravado na História desde o momento em que saltou para as bocas do mundo.
Conheci pessoalmente Otelo Saraiva de Carvalho na Guiné, colónia portuguesa que com esses nome e estatuto me foi apresentada na escola primária, para a qual fui mobilizado no ano de 1970, com a indevida e propositadamente atribuída especialidade de atirador de infantaria, a fim de intervir em operações militares em substituição de um outro atirador de infantaria que fora morto em combate.

Disse, quanto à especialidade em que fui incluído, que o fora indevida e propositadamente, pois que, em 1969, ano da minha incorporação, existia já a especialidade de licenciados em direito, na qual eram integrados os recrutas que possuíam tal licenciatura, destinados a exercerem funções nos serviços de justiça e nos tribunais militares, semelhantemente ao que acontecia com os recrutas licenciados em medicina, aos quais era atribuída a especialidade de médicos militares, para que como clínicos prestassem serviço nas unidades e hospitais militares em que fossem colocados.
Ora, no meu curso de recruta, eu e mais quatro camaradas – era e é este o termo militar adequado – também licenciados em direito fomos classificados como atiradores de infantaria¸ numa espécie de vingança ou, pelo menos penalidade, pela militância que tivéramos nas crises académicas de 1962 e 1969, cujo cariz foi, académico é certo, mas com intenso pendor político contra o regime.
A classificação que assim nos foi atribuída e subsequente mobilização para perigosos teatros de guerra, considerámos nós, penalizados, como considerou a generalidade dos militares de carreira que do facto tiveram conhecimento, como que uma espécie de condenação à morte aleatória. Militantemente hostis ao regime ditatorial, atiradores corríamos o sério risco de morrermos em combate e, assim sendo, cada um que perecesse era menos um a agir contra o regime.
Isto em concreto, assim como vários outros aspetos do regime, nomeadamente a guerra sem termo militar possível nem fim político à vista, a impossibilidade de discussão pública dessa matéria, como de todas as outras que a censura considerava perniciosas, enfim, o total impedimento do exercício dos direitos democráticos, foram objeto de inúmeras conversas que, na Guiné, tive com Otelo e outros oficiais, milicianos e de carreira.
Soube em setembro de 1973 que no seio dos oficiais de carreira, na sua quase totalidade capitães – os que mais intensamente viveram a guerra no terreno e se aperceberam da falta de saída para ela com o regime vigente – tinham iniciado reuniões das quais resultou a decisão de pôr fim à ditadura e restaurar em Portugal as liberdades cívicas, ou seja, a Democracia.
Assim aconteceu em 25 de abril do ano seguinte, o 25 de Abril, o dia mais feliz da minha vida.
Como uma das consequências da liberdade alcançada, não mais haveria, como não houve, espúrias classificações em especialidades militares, nomeadamente em especialidades operacionais.
Soube então que aquele capitão (não só esse, mas é ele o tema desta “Opinião”) com quem convivera na Guiné era um dos líderes do movimento militar que depusera o regime ditatorial, e que fora ele quem elaborara o plano das operações e as coordenara, com a eficácia e isenção de derramamento de sangue que se conhecem, o que tornou o 25 de Abril internacionalmente conhecido e admirado como a revolução mais pacífica e melhor conseguida de quantas houvera.
Sabe-se que Otelo foi quem durante os primeiros tempos da consolidação do regime democrático deteve o maior poder militar, que não utilizou mesmo no mais conturbado período revolucionário em que o deteve, e, estou em crer, foi o simples facto de se saber que era ele quem o detinha e serem conhecidos os seus atributos enquanto estratega militar, que desentusiasmaram, nessa fase, qualquer veleidade de contrarrevolução, propósito que, salvo raras exceções, nunca deixou de existir no seio dos vencidos em Abril até à consolidação da democracia, e que continuam atentos a qualquer hipótese de, em um só golpe, ou mais ou menos sofisticadamente por fases, instaurarem em Portugal uma autocracia ou mesmo, se assim entenderem necessário aos seus propósitos, restabelecerem a ditadura.
Sabemos do percurso político do estratega do 25 de Abril, dos factos delituosos em que esteve envolvido e pelos quais cumpriu pena de prisão, mas deve, a meu ver, ser isso analisado à luz do que me parece ser a complexa, e por isso controversa personalidade de Otelo.
Com grande vocação para ator, movimentou-se na vida como se de um imenso palco se tratasse.
Quando o conheci e com ele participei em conversas em descontraídos convívios de fins de tarde tropicais, Otelo tornava-se a figura principal, contando peripécias das suas anteriores comissões militares, fazendo-o de um modo pleno de riqueza descritiva e gestual; não contava essas passagens da sua vida, representava-as tornando-as praticamente visíveis aos circunstantes.
Recente programa televisivo a propósito do seu falecimento, revelou bem esse particular aspeto da sua personalidade, desde uma candidez confessa a uma plena assunção dos papeis, reais, que a vida lhe foi levando a assumir, no plano militar, primeiro, e no político, depois, tendo neste acabado por ser vítima da fama que naquele granjeou.
Como expressamente consentiu, a sua ligação – não falo de liderança – a organizações políticas autoras de atos de violência, foi fruto da sua incapacidade para sair do cenário montado à sua volta e da inércia criada pelo papel político que lhe foi atribuído, do qual, segundo as suas próprias palavras, ingenuamente não conseguiu libertar-se, antes generosa e solidariamente representou até ao fim, não saltando para fora de cena quando já sabia que o pano seria feito cair fragorosamente cativando todos os que se encontrassem em palco.
Não esqueço que o 25 de Abril foi resultado de uma ação coletiva nascida da vontade e da ação de muitos a quem muito se deve, a alguns deles não menos do que a Otelo é devido em gratidão pela abertura das portas do caminho que conduziu à Democracia e à Liberdade que a ditadura teimosa, cega e ferozmente negava.
Mas porque agora é de Otelo Saraiva de Carvalho que se trata, termino dando parte de que desse mesmo Otelo, cumprida que foi a sua dívida cujo pagamento a sociedade dele reclamou, a memória que guardarei sempre é a daquele que foi o maestro na execução, na minha pátria, da mais bela sinfonia de todas quantas existem; a da Liberdade.

Ofir, 03 de julho de 2021
António Mota-Prego
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