Imunidade intelectual



Deveria ter dez ou onze anos quando surgiu uma imaginativa teoria que apontava para uma estranha realização que envolveu o esforço de muitas crianças. A tarefa era simples, apesar de trabalhosa:

registar num caderninho mil (?) matrículas de carros, entregar esse extraordinário registo na PSP e ser pago por isso! Não sei se esta ingente obra se circunscreveu apenas a Guimarães, ou se foi até um assunto nacional, mas na verdade era comum encontrar miúdos de caderno e caneta a registar meticulosamente as matrículas dos carros que passavam. Eu fui arrastado na torrente e, vivendo na Rua Paio Galvão, achei canja ao encargo a que (também) me propus. Não me recordo quantos dias passei naquilo. Já teria, no entanto, um pecúlio grande de matrículas que me dariam para comprar vários números do Major Alvega, na, então para mim excecional, revista de banda desenhada O Falcão. Mas lembro-me, isso sim, porque desisti da tarefa. Os miúdos trocavam entre si informações e alguém, provavelmente um adolescente mais informado, disse-me que não poderíamos inventar matrículas pois a polícia tinha registos e iria verificar, matrícula a matrícula, o nosso particular relatório; caso descobrissem uma matrícula falsa o esforço perder-se-ia ali e não haveria a recompensa tão desejada para os nossos bolsos cheios de coisas várias, mas sem dinheiro que se visse. Ora, apesar de muito novinho, a lógica fazia em mim já o seu particular caminho. Se a polícia tinha afinal todas as matrículas, qual a utilidade daquele monumental esforço recenseador? Com base nesse paradoxo insanável libertei-me da função amanuense, tão resolutamente quanto a tinha abraçado.

Nunca fui no entanto, confesso, um escravo da lógica. Pelo contrário, evitava-a sempre que a lógica cerceava a minha imaginação. Assim, fui com certeza um dos últimos miúdos a deixar de acreditar no Pai Natal. Arreliavam-me aqueles chicos-espertos que vigiavam os pais para lhes descobrir, no fundo de um guarda vestidos, um embrulho que, confeririam mais tarde, era igual ao que o Pai Natal lhes traria. Achava patético esse esforço pela verdade. Era muito mais interessante imaginar um senhor de barbas brancas procurando no saco a minha particular prenda, que compensaria largamente um ano de contidas maldades e aplicação qb. Rui Vítor, é esta! E, como nunca lhe escrevi (isso já seria credulidade a mais), ficava sempre em incontido frémito à espera de uma boa surpresa. Agradeço-lhe hoje, vivamente, o saxofone em plástico duro e prateado que arreliou durante meses a minha aturdida (e com certeza arrependida) família e um avião a pilhas que se movia em círculos no chão, acendendo as luzes para a descolagem ... que nunca acontecia, exceto na minha imaginação. Reprovo-lhe, ainda assim, um magnífico navio de guerra, cheio de peças, que eu transformei numa desconchavada traineira, depois de horas e horas de árduo trabalho, em que maldisse não ter empregue esse mesmo inútil tempo a registar matrículas automóveis.

Mesmo assim tenho um carinho muito especial pela lenda do Pai Natal. Não a transmiti às minhas filhas, pois já não se usava. E mal.
No entanto a imaginação humana não tem limites e o degrau do esquizofrénico vem logo a seguir ao degrau do inócuo, o que se torna profundamente enojativo em dias tão inesperados como os que ainda vivemos.
Aditivados por maniqueístas convicções políticas ou religiosas, ou pelas dispensáveis séries catástrofe dos canais streaming, tudo se inventa com delirante imaginação. Que o coronavírus não existe e é apenas uma forma de reforçar o controlo dos governos sobre os cidadãos, que a tecnologia 5G vai propagar de forma absoluta o vírus, que o Bill Gates, através das vacinas, inocula nos pacientes um chip que as manipula, que a vacina, como defendem alguns evangélicos americanos, é uma forma de esterilizar as populações ... não há limite para a estupidez globalizada.
A forma rápida como foram desenvolvidas as vacinas implicará, certamente, algumas falhas. O que parece óbvio, pela informação disponível, é que a vacina foi a forma de retomarmos com mais segurança a nossa vida. Ler hoje os números de infetados e de mortes parecerá, a qualquer pessoa de boa-fé, uma prova clara e inequívoca da importância e eficácia da vacinação.

A liberdade é um valor fundamental das sociedades democráticas. Não se deve impor a ninguém a vacinação. Deve aconselhar-se e promover a vacinação agindo de acordo com o que a esmagadora maioria dos cientistas, das pessoas e dos governos, entendem ser o bem-comum. Quem não o fizer terá de arcar com as consequências da sua convicção, por mais obscurantista que ela seja, sem termos que gramar com histéricos gritos de assassinos ou esbaforidas citações orwellianas aplicáveis ao terror estalinista e não (nem com toda a desbragada imaginação) às sociedades abertas. Há que, quem assim decide, ser responsável pelos seus atos e pelas suas decisões, assumindo-as sem complexos de perseguição, e, sobretudo, sem nos chatearem com a sua imunidade intelectual.


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