A estranha geografia do cumprimento

Não me lembro exatamente quando me começou a incomodar receber beijinhos de homens, mas houve uma altura, na minha infância, em que isso aconteceu. Aquilo chateava-me imenso. Já era um rapazinho

e lá vinham aqueles lábios encher a minha cara de saliva masculina. Achava aquela situação um desprestígio à minha ainda titubeante (mas já convicta) masculinidade. Ai que lindo menino: chuack! Que nervos!
A partir de determinada altura comecei a estender-lhes a mão ganhando um ainda curto, mas já suficiente, perímetro de segurança. A coisa foi resultando e eu comecei a começar a sentir-me, finalmente, um rapaz.

Portugal é um país de afetos em que as pessoas gostam de exprimir através do toque a satisfação de encontrar alguém. Veja-se o inefável Marcelo que, apesar da pandemia e da sua proverbial hipocondria, rapidamente retomou os beijinhos e os abraços. É irresistível. Mas há um conjunto de portugueses - mais germânicos e menos numerosos - que detestam o toque. Muitos desses espécimes sentiram-se profundamente aliviados durante a pandemia, pois detestam o contacto físico. Esses, e aqueles personagens que nos estendem a mão como se estendessem um molho de grelos, ou como se a mão com que cumprimentam fosse uma peça de caça morta, estão no nível 1 do cumprimento. Por outro lado, aqueles ou aquelas que quase nos pegam ao colo quando nos encontram, estão no nível 10. Eu sou um 7, se tiver com muitas saudades serei talvez um 8.

O velho cumprimento de mão, o famoso bacalhau, e principalmente os beijinhos ainda não estavam suficientemente apurados e veio a maldita pandemia para complicar ainda mais a difícil geografia do cumprimento.
A espécie humana pode ser muito boa a descobrir vacinas, mas não é particularmente brilhante a descobrir novas formas de cumprimentar. O pavoroso toque de cotovelo, ou o folclórico cumprimento pé com pé, desembocou no atual e popularizado cumprimento de mão fechada. Um pavor de saudação, diga-se. Uma mão fechada é sempre um mau prenúncio. E que tal, se o medo de contágio ainda paralisa, um bom-dia apenas, seria mais polido e menos constrangedor, e sobretudo menos agressivo.

Entre homens a coisa já era mais ou menos inteligível, apesar das modernas e desarmantes variações em que os polegares se entrelaçam. Mas o bacalhau era confiável. Dava para perceber quem tínhamos do outro lado. A firmeza do cumprimento era um rápido atestado de caráter e o prolongar do gesto uma boa medida da conivência existente. Como é possível atestar isso agora com a insensibilidade óssea dos metacarpos? Mesmo no cumprimento de mão homem-mulher, aonde não existisse uma cumplicidade suficiente que permitisse avançar para a beijocada, tinha o seu encantador ritual. Apertava-se a mão a uma mulher com delicadeza, com um ligeiro baixar de cabeça e aquele contacto era simpático e suficiente.
Os beijinhos sempre foram um bocadinho mais complexos que a mãozada. Devo avançar ou não? Será adequado? E depois começou aquela (pavorosa) história de um beijo só para marcar, até no cumprimento, a condição social: a pirosice de quem não queria ser possidónio, sendo-o por excesso de zelo. Mas os beijinhos, se não forem lambuzados, mas um terno encosto de faces, são ternos, agradáveis e simpáticos. Mas foram-se. Individuais ou aos pares, vão desaparecendo como as andorinhas. Se aplicássemos aos beijinhos a lógica do novo bacalhau talvez juntássemos testa e bochechas num novo e dispensável cumprimento.

Ainda assim o abraço foi aquele que mais ficou a perder. O mais superlativo dos cumprimentos é hoje uma raridade. Já não se dão os ossos, ficamo-nos com os nossos próprios, tristes e abandonados, sem quenturas alheias, sem aquele aperto que quantifica e, ao mesmo tempo, aplaca a saudade. E para quê?
Por mim voltava ao que era antes: voltava à histriónica beijoqueira nacional. Faz-me, a este nível, mais falta o exagero do que a contenção.

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