In hoc tempore

Facilmente constatável como realidade crível, a civilização europeia, no que tange à sua unicidade cultural e como referenciada a um delimitado espaço, não é a única que se verificou neste planeta.

Muitas outras nele aconteceram e subsistem, quer nessa grandeza, quer em subdivisões, quer, ainda e até, em particularidades que, sendo-o, assentam num fundo de pertença que se lhes pode dizer comum; sem, por outro lado, se excluírem culturas de menor, ou muito inferior dimensão demográfica e espacial.

Ora os valores dessa nossa civilização (mormente os ético-sociais), convêm reportá-lo sempre (para que não se o olvide face à sua extensão um pouco por todo o planeta e ao longo de séculos), levaram os seus portadores a olhar e agir em termos do seu umbigo, como se aqueles, esses valores, fossem ímpares (os únicos susceptíveis de serem os correctos) e numa prática que se traduziu por sua imposição; originando, com isso, alterações que perturbaram o processo evolutivo próprio de cada uma dessas outras civilizações, ou culturas. Mas e como seria previsível, mesmo quando o nível de absorção foi grande, a interiorização de civilizações, e culturas, nunca foi plena e, as mais da vezes, muito longe disso. Mesmo quando razões de procedência étnica e, sobretudo, económicas (de paridades produtivas, comerciais e de serviços), criaram efeitos e consequências que, à primeira vista, podem propiciar uma ilusão de identidade. Que, no entanto, o não é.

Importa, assim e nessa afirmação, distinguir que, no presente, pode haver a tentativa de confusão daquela nossa civilização com qualquer coisa dissemelhante dela e a que se tem atribuído a designação de ocidental. É que, desde logo, a equiparação não é admissível porque esta última, em si, não comporta a categoria de civilização tal como ela tem sido entendida; pelo que os termos europeu e ocidental não são sinónimos. Sem nos prendermos em detalhes e para o que no fim se vai interrogar, aceitando uma ramificação com origem europeia, talvez seja bom rememorar que a partir da revolução industrial e da sua expansão através dos impérios coloniais, sobremaneira o britânico e, depois, com a independência de partes de alguns deles, criaram-se condições exponenciais de desenvolvimento permissivas de alargamento do mercado que, progressivamente, se foram ampliando até se chegar à actual dita globalização. A par disso e também por causa disso, o desenrolamento da ciência e tecnologia sofreu uma progressão similar, atingindo também velocidades de propagação ainda inimagináveis há anos (veja-se o caso da vacina para o cov19); pelo que, de modo geral, o espaço e o tempo terrestres tornaram-se parâmetros superáveis e, digamos, quase depreciáveis à escala planetária. Num conjunto circunstancial que provocou, nos países mais avançados no todo desse processo, à gestação neles de sociedades altamente consumidoras e numa crescente satisfação de necessidades materialistas não primárias.
Mais uma vez o parêntese para um apressado, e simplificado, aprofundamento do atrás escrito. Não é preciso ser bruxo para se perceber que, paulatinamente a partir do século XVIII, a economia foi ganhando foros de senhora e tutora dessas sociedades (e, vá lá, hoje, pode-se dizer de grande parte do mundo). Isto porque, o sucessivamente crescente complexo industrial, ao produzir mais e mais bens e ao alargar o cardápio deles desmedidamente, careceu de uma também mais procura, numa dependência simbiótica que, ao precisar de maior força de trabalho, ao empregar mais pessoas, desviou-as de uma série de serviços (e até produções) que, anteriormente, as próprias faziam e, por outro lado, disponibilizou mais retribuições, num circuito que, com o tempo, foi impondo uma maior concentração humana em determinados espaços. Densificação populacional que na potenciação acontecida no correr de décadas e por força de políticas mais recentes de I&D (bem como da sincrónica P&D), fomentou exponencialmente o sector terciário ... e, consequentemente, o sempre maior afluxo urbano. Ora é este fenómeno, este resultado duma precisa infraestrutura social (na sua subordinação à superestrutura), que define o mundo ocidental, ou os que dele se avizinham nesse modus vivendi.

Mas isso não chega para criar uma civilização.
Basta, para tanto, atentar na diversidade de culturas que subsistem nas grandes metrópoles ocidentais; nos resquícios civilizacionais que nelas se encontram e, por vezes, chocam.
É que uma civilização é algo que advêm de um passado estruturado sobre si. De uma estratificação sedimentada ao longo de milénios e que singulariza o conjunto de sociedades que geraram, e acolhem, essa sua particular forma de ser colectiva; com um característico, e próprio, património de valores e bens. Na evidência de, como processo físico a que é redutível (e como todos estes na sua sequencialidade consequente), prosseguir uma dinâmica evolutiva; ou seja, não estática.

Ora o denominado Ocidente não reúne esse conjunto de atributos. Por enquanto, pelo menos. E as semelhanças que se podem encontrar em muitas sociedades que se atribui pertencerem-lhe (p. ex.: a Coreia do Sul e a França), dão bem para perceber que as respectivas culturas são desiguais e encaixam em civilizações diversas. Só que a já referida globalização, ou o status quo já anterior (a progressão científica e tecnológica foi encurtando espaços e reduzindo tempos; em suma, o desenvolvimento das exigências das infraestruturas sociais dominantes à escala mundial foi-se impondo e quantas vezes à força - p. ex.: os casos da China e Japão -), tem estado a provocar uma miscigenação; um nivelamento que tende a esbater muitas especificidades entre civilizações. Sendo entretanto que, qualquer civilização e como atrás referido, assenta na persistência da transmissão geracional; num fluir sucessório com toda a carga de o seu passado até um presente que lhe é o resultado. Uma herança que, há milénios, era veiculada através das respectivas células sociais (família, clã, tribo, povo e, depois, reinos, estados e o mais que se lhes segue). Como se diz, mamava-se desde o leite materno.

Acontece que, desde meados do século passado (com o marco do Maio de 68), começou a assistir-se a uma desconstrução de muitos dos nossos anteriores valores. Fenómeno que se tem vindo a agravar com a desagregação da vivência familiar. Ao mesmo tempo que se tem exacerbado a reclamação de direitos individuais em desfavor de obrigações colectivas, bem como e como reflexo, a propensão para um imediatismo, o já e uma exaltação para satisfações sensoriais prazenteiras. Paralelamente, talvez como sequência do atrás apontado, ou e mais provavelmente não só, surge um menosprezo pelo passado, pelo devir histórico que se ignora em prol de um individualismo que não nos era próprio e, isto, num momento em que estamos cada vez mais interdependentes.
Não será de questionar para onde se encaminha a nossa civilização?

Fundevila, 20 de Outubro de 2021


quarta, 27 outubro 2021 08:42 em Opinião

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