A primeira vez



Há sempre uma primeira vez para o que quer que seja; acontece agora a de escrever a minha crónica mensal fora de casa. Aonde havia de ser? No largo da Oliveira onde,

como um filme sem guião, mas com uma lógica muito própria, o espectador, com alguma atenção e outro tanto de imaginação, se julga capaz de adivinhar vidas, estados de alma, sensações e sentimentos de quem pousa no largo ou nele passa.
Os sinos da igreja acabam de sinalizar, com assustadora sonoridade, ainda que não tão assustadora como assinalam a aproximação das dezanove horas, momento da partida para a missa que quotidianamente se celebra no vetusto templo, para o que os fieis são desse modo avisados.

Digo assustadora porque, no sereno bulício das esplanadas, o repentino e inesperado início do repique do sino maior da manuelina torre, faz sobressaltar sobretudo os forasteiros, mas igualmente muitos dos locais que, naquele instante, se encontram mergulhados no aprazível desfrute do local e do momento.
Este chamamento ao ingresso no divino ocorre pelas 18h37 primeiro, depois pelas 18h17 e, finalmente, pelas 18h57, cada uma das vezes começando por 23 toques em sequência progressivamente mais rápida, seguidos, após brevíssima pausa, por um toque, da primeira vez, dois toques da segunda e três da terceira.
Mas neste momento das doze badaladas que separam, no dia, a manhã da tarde, irrompe no Largo, vindo da rua de Santa Maria, um grupo de algumas duas ou três dezenas de crianças de infantário, o que não é incomum, sendo-o, porém, o facto de virem a cantar o hino nacional, cujos últimas notas se evolaram ao desaparecimento das crianças em direção à Srª da Guia, topónimo bem mais bonito e adequado ao local do que o oficial “rua Alfredo Guimarães”. Porque não colocar-se, como vejo em alguns e não poucos casos, uma placa, ainda que discreta, sob a da topónimo atual, indicando o antigo nome da rua ou praça. Pergunte-se a vários passantes onde é a rua Francisco Agra e onde é a rua de Santa Luzia, e veja-se a diferença ….

Porque cantavam as crianças o Hino Nacional? Hoje não ocorre data de acontecimento gravado na história pátria nem algo semelhante, pelo que bem podem pôr-se as mais contraditórias hipóteses, como, o que acho mais provável, a de o canto se destinar a que as crianças cedo aprendam o hino que lhe trarão a pátria à alma, onde quer que se encontrem e quando quer que seja, assim se lhes incutindo o louvável sentimento de patriotismo, ou, o que não pode ter-se por impossível, o detestável gérmen de nacionalismo.
Mas, desaparecidas as crianças, já sou atraído pela conversa de duas mulheres, em mesa próxima, a quem o tempo, com a sua voragem, tendo-lhes já levado o miolo da juventude, ainda lhes deixou uma não desprezível capa de atraente frescura, as quais falavam, não tão sonoramente como o sino da igreja mas bem audivelmente ao seu redor, sobre o quando, o como e o que comerem para manterem o aspeto que não cessavam de reciprocamente se elogiar e reciprocamente se prescrevendo a receita própria.
Ouvir falar de comida tocou as minhas glândulas salivares, sempre prontas a entrar em erupção, como constata a minha odontologista a cujos serviços não falho a cada seis meses, e lembrou-me ser mais que hora de ir a casa almoçar, pois que além dos aliciantes diários hoje tinha o acréscimo da presença do meu neto, o que torna mais premente o cumprimento da hora do almoço, dado que o rapaz, que já me ultrapassou em altura, tem hora certa para ir para a escola, edifício que inaugurei como “o liceu novo” no longínquo ano de 1961.

Fui, almocei e regressei ao mesmo posto de observação que ocupara de manhã, precisamente a mesma mesa, só variando quem me calhou em vizinhança.
Atrás de mim, um homem e duas mulheres, para quem a minha educada discrição me aconselhou a não olhar, falavam alto, ao que mesma discrição não impunha restrição alguma, e falavam de quê? De comida! Não da que haveriam de comer, mas a que tinham comido, sobressaindo um rabo de pescada, profusamente temperado depois de aberto, e espalmado sobre o artefacto de cocção que, disse a da receita, havia de ser previamente bem aquecido.
Turistas sempre a passar e, pelo modo de vestir, concluo serem, na sua maioria, de países nórdicos. Elas, as da maioria, oferecendo grande quantidade de pele ao ar cuja temperatura aborda já a que faz à sombra em normal outono, o mesmo acontecendo com eles, também os da tal maioria, de T-shirt e até de singlet (aprendi há pouco que é assim que agora se chamam aquelas camisolas interiores sem alças, fundo decote e extensas cavas). Tal como, antes do almoço, ouvir falar de comida me provocou reação salivar, a vista de tais turistas assim ataviados provocou-me um arrepio de um frio que eu, suficientemente agasalhado, realmente não sinto.

E há, também, habituais passantes, para mim (e provavelmente não só) já figuras típicas, de que acabo de lembrar-me por dois deles, mais corretamente dizendo, um deles e uma delas, cruzarem o meu raio de visão quando eu, escrito o parágrafo anterior, de cotovelos sobre a mesa e mãos postas na perpendicular sobre o nariz, queixo apoiado nos polegares, também estes evidentemente postos como as mãos a que pertencem, buscava, olhos voltados para uma espécie de infinito, a continuação desta crónica.
Ele – refiro-me ao passante masculino – é homem um pouco mais baixo que eu, morador aqui no coração do centro histórico, chama-me a atenção pelo facto de caminhar sempre muito apressadamente, de mãos nos bolsos, boné na cabeça e cigarro no canto da boca, levemente curvado para a frente, como se fosse essa inclinação a impeli-lo a andar como se estivesse sempre a fugir da polícia. Recentemente fiquei a saber que ele sabe bem quem eu sou, nome, profissão e outras coisas mais resultantes de alguma atividade pública que em tempos tive, pelo que ando a esforçar-me por ultrapassar devidamente o mero conhecimento de vista que dele tenho, para poder falar-lhe falar taco a taco com ele, o que espero fazer em breve. Um destes dias contarei como foi e porque foi a breve conversa entre nós trocada. Dará para uma nova crónica.

Ela, a passante feminina, é uma mulher com um desenho curioso, postura corporal em forma de “esse” escrito ao contrário, cabeça levantada, olhando bem em frente, sempre e só em frente, com o eixo perpendicular ao solo e não no enfiamento do tronco, cabeça em que pontua um nariz afilado como se para cortar o vento, boca filiforme e uma expressão de triste conformação com uma vida que presumo solitária, exceto nos diários ingressos na missa para que a vejo entrar e que ao início referi a propósito do soar do sino da igreja.
Mãos cruzadas sob o externo, casaco de três quartos, saia bem por baixo do joelho, sapatos rasos algo masculinos, passo largo e andar ondulante como se os sapatos em vez de solas tivessem molas, seria assim que eu desenharia se, sob coação, alguém me dissesse – agora desenha uma “beata”.

Neste momento já o sol se pôs, e na esplanada ligaram o aquecimento sobre a mesa em que me encontro.
Largo quase vazio, ainda foi tempo para uns rapazes e raparigas que ocuparam mesa pegada à minha conversarem no seu linguajar prenhe do mais vernáculo e primitivo e obsceno calão, ainda não há muito tido como crime de ofensa à moral. Nos meus princípios de vida profissional tive ocasião de “defender alguns palavrões”, que atualmente são o léxico corrente desde as crianças até aos pais e aos avós delas, na mais completa indiferença pelos circunstantes e por uma estética de comportamento que, com desgosto, constato estar completamente perdida.
Pena que seja deste modo que se apresenta o pequeno universo que, neste momento, me rodeia.
Praticamente noite, mais um grupo de turistas todos de braço no ar, máquinas fotográficas e telemóveis em punho, apontando para a tão especial gárgula da aresta norte da torre da igreja. Só não é pornográfica por estar coberta pela santidade do local em que existe. Alguma muito legítima e especial razão haverá para que assim seja. Já ouvi dizer que é para mostrar um dos pecados que se não devem cometer, e também já ouvi afirmar que, tal como acontece em semelhante gárgula da igreja matriz de Caminha, é uma forma de, voltando o trazeiro para Espanha, ofender os espanhóis, numa época em que não éramos “hermanos”, mas sim inimigos figadais.

Guimarães 09 de outubro de 2021
António Mota-Prego
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terça, 09 novembro 2021 19:13 em Opinião

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