Eu sou (mesmo) gajo

Comecei a escrever neste histórico jornal em dezembro de 2002. Era então uma criança de 38 anos.
Na altura, substitui o Vítor Borges e juntei-me, nesta coluna, aos meus amigos Ana Amélia, António Mota Prego (que, felizmente, ainda por cá escreve) e José António Pinheiro.

Vim ocupar a vaga social-democrata, digamos assim, reforçando o espectro pluralista deste jornal.


Levei inicialmente, creio, a missão muito a sério, até que, um dia (não sei qual), me fartei do lado catequizador que inicialmente assumi. Quem me conhece sabe que perco com muita facilidade a pachorra. O previsível irrita-me imenso, sempre me irritou. Teria dado, porventura, um missionário terrível no século XVII. Iria para o Japão, entusiasticamente jesuíta, e passado pouco tempo, sem jornais, internet, sem cinema, sem concertos e sem livros, estaria a vociferar contra os autóctones que (sem o saberem) me arrastaram para aquele pardieiro com natureza a mais.

Gosto muito de escrever. Nestas crónicas d’O Comércio deixo inicialmente qualquer ideia boiar em vinha d’alhos o tempo adequado, escrevo de rajada e retorno ao texto para o limar. A escrita liberta-me. Por isso os manifestos paternalistas com que me ensaiei prioritariamente neste jornal foram-se desvanecendo e dando lugar a crónicas que escrevi sobre o que me aparecia, o que me irritava, o que me encantava, as memórias, os desejos, e o humor que julgo fundamental em toda a escrita. E tive um imenso prazer nessa viragem, pois o que escrevia tinha a ver comigo. Até na escrita mais assumidamente política, nunca afoguei, creio, o meu lado mais cínico que sempre vem à tona para gozar comigo mesmo. Ainda hoje o faz.
Para surpresa minha fui, nessa viragem, sendo abordado na rua por pessoas que não conhecia, que gostavam ou reprovavam, mas que reparavam no que escrevia, que liam. Algumas delas abordavam-me com a frase mortal “eu sei quem o senhor é”. Não há nada mais brutal que começar uma conversa com essa frase. Punham-me desde logo de sobreaviso para eu não me armar em parvo. Coisas de uma enorme cidade no coração, mas de uma frágil miniatura no que diz respeito à privacidade.

A minha relação com a escrita vem do meu prazer de ler. A minha relutância em publicar o que escrevo vem igualmente desse exato prazer. Vem de longe assim a minha pulsão para escrever. Desde miúdo. Mergulhava nas minhas redações escolares como se nada mais existisse. O meu delicado universo na disciplina de português compunha-se aí e ganhava estatuto aí. Podia chegar atrasado às aulas que nenhuma das minhas adoráveis professoras do secundário me dava o sermão que dariam a outros.
A escrita sempre me saiu, acho. Até as minhas paixões ficavam registadas na escultura, ainda muito confusa, que fazia com as palavras exageradas que brotavam, paradoxais, na anestesia amorosa.
Tenho, igualmente, um lado snobe insuportável. Relembro com mágoa ter perdido concertos extraordinários, pelo facto de, entre os 30 e os 40 anos, ter metido na cabeça que não ia a concertos de músicos que fossem mais velhos do que eu. Na escrita tenho também dessas coisas e acho inacreditável (continuo a achar) como apenas 6143 portugueses ainda não tenham escrito um livro. Debati-me assim entre a pulsão de o escrever e, por outro lado, o prazer de pertencer a uma minoria: os tais 6143 portugueses que ainda não escreveram um livro.
Assim, a ideia de editar um livro ... apesar de me motivar aquela tríade de escrever um livro, fazer um filho e plantar uma árvore ... nunca me saiu propriamente da cabeça, apesar de não ter bem a certeza se já plantei mesmo uma árvore. Parece-me que sim, mas não tenho bem a certeza: o meu lado missionário é, como se vê, miserável.

Ganhei finalmente coragem para escrever um livro, ou melhor, para selecionar e corrigir mais de 60 crónicas que nestas páginas fui deixando ao longo do tempo. Quando, por funesta vaidade, me decidi a isso, socorri-me de dois queridos amigos meus que, conhecendo-me bem, nunca me deixaram fazer aquilo que sempre esteve na minha cabeça: desistir da empreitada. Um deles organizou o livro, o outro fez uns magníficos e humorados desenhos que valerão o livro, e escolheu-me o título para a publicação através de uma das minhas crónicas: eu era gajo. Gostei da sugestão pois é um título suficientemente tolo para não me levar muito a sério e, ao mesmo tempo, serve para contextualizar o temor sobre o que de terrível virá quando alguém começa uma frase por “eu era gajo...”.
A apresentação pública da edição de autor de Eu era gajo será (assim o prevejo) no dia 3 de dezembro, uma sexta-feira, ao final da tarde no magnífico edifício da Assembleia de Guimarães, que fará 50 anos em 2022.
Não vou convidar expressamente ninguém, para não fazer sentir nos outros aquilo que detesto sentir em mim: a obrigação. Se tiverem prazer nisso: ótimo. E assim, aparecendo pouco gente, tenho sempre a justificação de achar que a culpa é minha e não daquilo que escrevo e, quem sabe, tenha então tempo e vontade para fazer aquilo que não tenho bem a certeza se fiz ou não: plantar uma árvore.
Está dito e está feito. Vou ser mesmo gajo para editar um livro.


terça, 16 novembro 2021 14:04 em Opinião

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