A quadratura do círculo

desarmar a armadilha do apocalipse
Boris Johnson

O Homem Vitruviano, de Leonardo.


Porquê? Porque nesses fins do século XIV, já com o renascimento italiano a decorrer, a intenção era a da recolocar o Homem como a medida das coisas. Ideia que, expandida do seu inicial e circunscrito conteúdo renascentista, se infiltrou na cultura europeia em relação a todas as suas áreas vivenciais, andou mundo e subsistiu até a este presente, nela, de plenitude de individualismos; mesmo nesta fase pandémica do cov19.
É certo que há décadas o pensamento escatológico tem vindo a ganhar ressonância. Isto por medos que vão sendo sustentados por o conhecimento objectivo das adulterações provocadas pelo homem no percurso processual do planeta.


Na usual derrapagem mais ou menos despropositada e reportando-nos à curiosidade da dualidade de acepções do termo escatológico (por provindas de étimos gregos diversos: o skatós e o eskhatós), que se podem admitir aplicáveis, em cada um dos seus dois significados, ao presente e ao futuro da Terra, a verdade é que este período antropoceno (que se quer nascido com, e provocado por, a industrialização) está a agravar a evolução daquilo que se previa ser o decurso natural do holoceno.
Situação que, como começa a ser facilmente constatável, está a gerar modificações alarmantes; como é dito e denunciado por minorias em tom cada vez mais amplificado. Minorias que tendem a atribuí-las ao modelo de sociedade consumista (de mercado) que impera por tudo o que é lado. E nisso estamos!

Descrito sucintamente o palco em que o espectáculo se desenrola, situemo-lo, entretanto, na COP 26, que decorreu em Glasgow entre 31 de Outubro e 13 do corrente mês. Com as atenções ali centradas na concentração dos GEE (e, sobremaneira, no volume das emissões de CO2), crida como principal causadora das alterações climáticas e, subsequentemente, de uma necessária transição energética; ponto este que se quer fulcral e que tem propiciado, sub-repticiamente, uma sinuosa digladiação de interesses, situáveis entre os que não querem alterações consideráveis da infraestrutura vigente nos países industrializados, ou nas dalguns que estão a caminhar para esse topo (e que se defendem atribuindo a acumulação dos efeitos perversos aos que já estão nele e, portanto, sentem-se injustiçados ao terem que suportar as mesmas restrições que aqueles não tiveram) e aqueles outros que querem a mudança mais ou menos rápida daquela infraestrutura. Na evidência de que esta última pretensão conduziria a uma reformulação da superestrutura, isto é, do próprio sistema em si.
Por força desta contenda, essencialmente de camarins, é que o Protocolo de Quioto (1997/1999) e o Acordo de Paris (2015 - COP 21), não foram cumpridos; na sempre incerteza de se poder afirmar que, se o tivessem sido, eles teriam invertido a tendência imputada ao antropoceno.


No entanto, no ponto em que nos encontramos, este problema é vital para a sobrevivência da biosfera e, portanto, também para o Homem: e foi ele quem lá, em Glasgow, esteve em representação. Curiosamente, entretanto, pouco ou nada foi trazido ao proscénio dessa peça que, a todos e cada um de nós, nos devia fazer actores dela, porque diz respeito à viabilidade do nosso futuro colectivo de animais terrestres. E mais do que isso e se não com o mesmo grau de incidência, ao da próprio Terra.
Ora e como defendeu Adam Tooze, os meios para atalhar essa situação calamitosa existem e podem ser perfeitamente comportados no modelo económico vigente. Só que o que não existe é a vontade efectiva de os destinar a essa finalidade; de pegar o touro pelos cornos e não prosseguir uma política de panos quentes, de tentada manutenção de status quo como pretendem os interesses instalados.
Falta de vontade adivinhável, como as muitas vozes que, desde o início da COP 26, já adiantavam que essa intenção de efectiva resolução poderia vir a ser mais uma vez adiada. Numa de cedência das elites políticas, seus correligionários e colaboradores (com o lobismo, sempre presente em tudo que mexe com os grandes interesses), por demais enfeudadas e cativas do verdadeiro poder que se lhes impõe por detrás das cortinas. E espírito de cedência, esse e por alienada insensibilidade, que, curiosamente, transvasa desses círculos executivos e estende-se ao comum das populações. Basta, para tanto, atentarmos no desenfreado consumismo que se reatou após o desanuviamento das restrições a que o covid 19 nos sujeitou. Como se o já, o imediatismo em que se vive, nada tivesse a ver como o depois, com aquilo que será e empreenderá o devir dos dias, meses e anos que se seguirão.


Para culminar o ramalhete, durante a COP 26, a Nature publicou um artigo da Universidade do Arizona (USA), em que, analisando a temperatura do planeta de há 24.000 anos para cá, detectaram que, nos últimos 10.000, se verificou uma tendência para o aquecimento, com uma subida sem precedentes nos últimos 150 anos; ademais muito agravada em cada um dos mais recentes (mesmo em 2020, apesar da paralisação por causa da pandemia), pelo que entendem que se está a ultrapassar os limites da reversibilidade, o que é motivo de muita inquietação.
Foi neste contexto que o esperado aconteceu.
Como se previa, os interesses do capital prevaleceram sobre o bem comum, empurrando com a barriga as imprescindíveis decisões para mais um após. O que não pressagia nada de bom! E mais uma vez ficamo-nos quase pelas intenções. Ora, sabe-se, de boas intenções está o inferno cheio.


Entretanto, neste dito jardim à beira mar implantado, o Zé permanece apático a este aflitivo resvalar para o precipício; embalado e adormecido em liliputianas guerras de Alecrim e Manjerona que vão, do soalheiro mais rasteiro à politiquice barata e numa profusão mediática que olvida a Parábola dos Cegos, de Bruegel, o velho, ilustrador da fala de Cristo (“Deixai-os, são cegos a conduzir outros cegos! Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão na cova” Mateus 15.14). Ademais, dramatizando, a também noticiada fala de Frans Timmermans, Vice-Presidente da UE, que, durante a COP 26 e referindo-se ao seu neto, prognosticou que: “Kees fará 35 anos em 2050. Se tivermos sucesso, viverá num mundo habitável. Mas se falharmos, e quero dizer, se falharmos, agora e nos próximos dois anos, terá que lutar com outros seres humanos por água e comida.”.
A tanto nos pode conduzir os que não querem perder privilégios; o grande capital plasmado nesta sociedade de consumo disposta a um jogo de roleta russa.
É que, na verdade, no processo social de geometria euclidiana que é o da nossa espécie animal, a quadratura do círculo (consumismo/bem comum) é impossível. É que a verdade é que a medida das coisas nunca foi o narcísico Homem (mero cisco na biosfera), para ser, como sempre foi, Gaia (a Terra Mãe); ou como prega Bergoglio, no seu elevado ministério, a Casa Comum.

Fundevila, 17 de Novembro de 2021


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