Um homem de pijama

A imagem mais forte dos últimos dias foi a de João Rendeiro, de pijama, a ser detido pela polícia sul-africana num hotel de Durban. O ar pouco surpreso de Rendeiro na fotografia,

foragido após ter sido condenado pela justiça portuguesa em três sentenças distintas, não deixa de ser intrigante. Como tiraram eles a fotografia? Entraram de rompante no quarto e dispararam o telemóvel? Pediram delicadamente Mr.Rendeiro, do you mind? É difícil perceber ... e o jornalismo de investigação não me deu resposta a tão fundamental inquietação.

Ao ver e ouvir o Luís Marques Mendes, no domingo, ainda me aquietei mais. O comentador referiu que a divulgação da fotografia de Rendeiro apijamado não se faz. Acrescentou ainda que o homem tinha direito à sua dignidade e que não merecia, apesar de tudo, ser assim achincalhado e humilhado.
Não sei porque razão a fotografia de um homem em pijama é humilhante. Eu compreendo que se perca um pouco de autoridade em pijama. Até aí vou: todas as ordens que dei em pijama às minhas filhas não foram acatadas com tanto sucesso quanto o que obtive (?) em indumentárias mais diurnas. Mas daí a perder a dignidade, vai um passo de gigante.
Ainda se fosse um pijama da Primark, mas agora um pijama oferecido pela Qatar Airways para os passageiros de primeira classe, não me parece que deslustre o fanfarrão. Bem pelo contrário.

Tive a felicidade de conhecer a terra em que o homem foi apanhado de pijama em 2010, aquando do mundial de futebol lá realizado. Foi uma viagem magnífica na companhia de 7 bons amigos. A viagem para a África do Sul é um martírio, coitado do Rendeiro. Na altura fomos para Londres e de lá apanhámos o avião para a Cidade do Cabo. Doze horas de avião, para quem não é muito dado a sonos, dá para fazer um apanhado da vida inteira e ainda sobra tempo.
A Cidade do Cabo é um daqueles acasos da natureza em que nos questionamos se realmente aquela cidade não terá sido mesmo desenhada por um arquiteto celeste, tão perfeita ela é. Mais abaixo, o Cabo da Boa Esperança, o sítio que Bartolomeu Dias dobrou no longínquo ano de 1488. E mais tarde, para acompanhar a seleção contra o Brasil, fomos a Durban que, mesmo sem a beleza estonteante da Cidade do Cabo, tem aquela estranha particularidade (que sempre nos deixa boquiabertos) do Sol nascer do mar. Recordo a felicidade desses dias e de toda a beleza natural daquelas paragens, muita ajudada, é certo, por um conjunto de vinhos magníficos que aquele país produz e que nós, diligentemente, provámos. O cabo que Bartolomeu Dias batizou originalmente de Cabo das Tormentas e que D. João II, por uma questão de marketing, rebatizou como Boa Esperança, é um sítio infestado por babuínos que, segundo nos disseram, assaltam os banhistas desprevenidos e roubam em bandos (Rendeiro, lá saberia). Para nós, portugas, isso não assusta e na primeira placa que encontrámos a avisar do perigo que corríamos, instando os visitantes a permanecer dentro das viaturas com as janelas fechadas, lá saímos nós dos carros para a fotografia da praxe, tendo como fundo uma placa que dizia precisamente que não deveríamos sair do carro. Portugueses, claro. Bartolomeu Dias teria feito o mesmo se houvesse então câmaras fotográficas e o mar não fosse, naquelas paragens, tão revolto, tão tormentoso.

O homem de pijama rivaliza por hoje com as vacinas covid para as crianças. O pânico e o pavor que sequestrou os órgãos de comunicação social levaram-me a espreitar, por curiosidade, o meu boletim de vacinas. Fiquei com a impressão de que faltam lá algumas vacinas, já que, recordo, passei uma boa parte da minha infância a tomá-las. Mesmo assim, na contabilidade da DGS, apanhei vinte vacinas entre os 3 e os 9 anos (difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite, varíola). Agradeço à minha mãe que a elas me levou e ao Estado que mas deu. Como mal não me fizeram suponho, por exclusão de partes, que me fizeram bem. O plano de vacinação, até há bem pouco, era sobretudo dirigido às crianças. Não me parece por isso estranho que o continue a ser.
Escandalizado deveria estar eu – e toda a minha geração - por ter sido radiografado aos pulmões mais vezes que o tornozelo do Maradona o foi. Não havia inscrição escolar em que eu não tivesse que tirar uma micro. Tão habitual foi isso durante a minha juventude que o meu corpo, pareceu-me, sentiu alguma privação de raios-X quando deixei de ser radiografado, assim como o faz relativamente à nicotina. Foi correto? Provavelmente não, mas, na altura, era “o que se usava”.
Tudo hoje é, no entanto, um escândalo. Vivemos numa sociedade hipersensível e exageradamente mediatizada em que o que se faz e o que se diz é escalpelizado até à náusea. Fotografar um bandido de pijama, dar vacinas a crianças, deixar cair, com humor, uma piada que se atreva a apoucar alguém, estão claramente na mira. Não parece bem.
Há muitos de nós a ficar chatos e previsíveis e, mais grave, a gostarem de serem chatos e previsíveis. A esses só desejo umas férias, a preceito, na República Popular da China, para verem, definitivamente, o que é mesmo bom para a tosse e se deixarem de mariquices. Upps, isto (também) não se pode dizer.

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