“O fim da ideologia”

Título que corresponde a uma teoria expandida por meados do século passado e que atingiu um dos seus picos com a obra de Fukuyama: “O Fim da História e o Último Homem”.


Na útil compreensão de que essa teoria assentava numa concepção filosófica que passava por, entre outros anteriores e posteriores, Hegel; e que se fundamentava na dialética de tese, antítese e síntese. Dinâmica social que e de certa maneira, pelo menos no que toca à ideologia política, teria atingido o seu cume com o sistema capitalista e a pretensa democracia dos Estados industrializados; ou pelo menos de alguns deles. Daí o fim da História. Já que essa obtida síntese não deixava possibilidades para qualquer outra melhor forma organizativa dessas sociedades e dela iria aproximando as restantes.

Só que, actualmente e perante o que vai ocorrendo, pode questionar-se se essa teoria, ao, parece, “tomar a nuvem por Juno”, não pode, e deve, suscitar a pergunta de: quod erat demonstrandum. Sabendo-se, embora, a circunstância do seu momento e a sua, portanto, precisa datação.
Senão vejamos.


Como se vem repetindo, os processos sociais, quaisquer deles, como processos materiais que são, estão sujeitos aos mesmos princípios de quaisquer dos restantes que se verificam no Universo; nomeadamente os da eclosão, progressão, regressão e cessação. É essa uma regra elementar da Matéria no entendimento mais corrente (na sempre dificuldade da confirmação do quarto estádio para o Universo, o da cessação, dado que este e em relação a ele pode admitir outras configurações) e, por isso mesmo, necessariamente aplicável à biosfera terrestre, ou a qualquer das suas particularidades. E na complexa multiplicidade destas, no que respeita à nossa espécie e seus agrupamentos organizados (sociedades), a diversidade de condições geomorfológicas, graus de cultura e desenvolvimento (ferramentas, equipamentos, etc.) é insofismavelmente díspar. Assim, um membro de uma tribo índia brasileira distingue-se perfeitamente de um habitante do bairro de Kensington, em Londres. Não como animais da mesma espécie que ambos são, mas nas suas específicas formas de estar.


Destarte e nessa indiscutível realidade, para situar e no regresso às leis da Matéria, dir-se-á que elas, em hoc die e face aos avanços científicos (também na algoritemia e computação), cada vez mais põem em causa a dialéctica hegeliana, ou as que a adoptaram. Isto porque, parece, o Universo massivo tem que ser apercebido como um todo contíguo e contínuo, provido de uma dinâmica expansiva estendida a todas as dimensões cósmicas (pelo menos é isso que se sabe e em que maioritariamente se crê), com infindos espaços e tempos que se verificam, numa evolução sequencialmente consequente, em qualquer delas (isto é, segundo as probabilidades de viabilidade verificadas na dinâmica evolutiva de cada conjunto individualizável, nele e na dos seus componentes). Dito de outra forma, cada sabido efeito (?) provem de todas (absolutamente todas e não só das determinantes ou perceptíveis) as causas (?) que o eclodem, numa cadeia ininterrupta e sem qualquer hiato de descontinuidade, no prosseguimento do que se lhe seguirá.


Dito isto, compreende-se que o suporte filosófico de O Fim da História está ultrapassado. Como o estará o a ele subjacente fim das ideologias. É que os processos materiais só cessam com a conclusão deles próprios, ou seja e no caso, com o finamento das sociedades humanas.
Na habitual deriva, desta feita, dir-se-á que, com ela, apenas se pretende reafirmar a distinção entre a dialéctica hegeliana e a sequencialidade consequente. A primeira, porque embora ela permaneça válida para uma lógica fenomenológica, o certo é que não corresponde à materialidade sucedente. Isto porque, como anteriormente mencionado, as dias causas (?) determinantes e perceptíveis de qualquer efeito (?) concretizam-no, não obstante subsistirem outras que, embora concorram nessa efectivação, permanecem indecifráveis para o reconhecer humano; nesta perspectiva, portanto, esta dialéctica funciona e tem a sua relativizada aplicabilidade (daí a diferença conceptual entre evidência e certeza). A segunda, porque e basta pensar que toda a matéria massiva advém de escassas partículas elementares que, aglutinando-se e interligando-se numa sequencialidade consequente, deram origem ao Universo (ao seu absoluto massivo). Ora foi essa estruturação complexa com decursos espaço-temporais descomunais que, no nosso planeta, permitiu o surgimento e a evolução da biosfera. O que, entretanto, só foi possível por variações na dinâmica desenvolvimentista e acumulativa das alterações que foram, e vão, acontecendo, em escalas de diferenciação potenciadas, consoante o nível da complexidade organizativa aumenta (não por a dialéctica de causas/efeito, mas num processo de sequenciação contínua). E são essas variações, as mais das vezes ínfimas, bem como pouco perceptíveis à ciência, ou mesmo imperceptíveis, que se foram, e vão, somando e geraram, e geram, o processar evolutivo. Resumindo, na Matéria não há saltos confrontativos (não há dialéctica de causa/efeito), mas um contíguo contínuo fluir encadeado (cordas ou qualquer coisa de equivalente); tal como o zigoto contém os ascendentes e segue no descendente, geração após geração.


A entender-se desta maneira, O Fim da História ou, melhor, o Fim da Ideologia, era uma teoria que tinha pés de barro e por isso a actividade sísmica do Processo Histórico fê-la ruir.
Por o que, hoje, como porventura nunca, a ideologia tem que ressurgir e afirmar-se à luz do dia. Porquê? Porque o sistema de sociedade ocidental que impera, por votado à maximização duma desenfreada apropriação das mais valias e através de quaisquer meios para atingir esse fim (dos eticamente mais reprováveis, e ilícitos, à simples atribuição predominante ao factor capital), conflitua socialmente, numa demonstração que nos está perante os olhos e emerge no clamor das desigualdades. É, pois, altura de idear objectivos precisos que orientem para um futuro mais equitativo e consentâneo. Da Utopia de Moore à miragem de cada qual segundo a sua capacidade, a cada qual segundo as suas necessidades, este nosso tempo tem que encontrar o ideário que permita prosseguir a progressiva evolução social num sentido mais humano e menos mercantilista. É que os tempos exsudam mudança. Nessa perspectiva é de realçar a percepção da anciã Igreja Católica, que está a tentar retomar a pureza ideológica dos Evangelhos. E é disso que se trata: de uma discussão colectiva permissiva de, na relatividade democrática, se traçar o admissível devir organizativo da espécie humana neste planeta a que chamamos Terra.
Tarefa com um decurso longo, cheio de escolhos e árduo, mas imprescindível. Para isso ... reabra-se o debate ideológico.

Fundevila, 15 de Dezembro de 2021


terça, 21 dezembro 2021 19:14 em Opinião

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