Ser dado à doença

Uma amiga minha utiliza com alguma frequência a expressão: ele/ela é muito dado(a) à doença. A expressão não é nova – ela apanhou-a da mãe – mas é,

não tenho dúvidas, bastante colorida. Há expressões assim. Em meia dúzia de palavras há frases que conseguem ser, como esta, um autêntico tratado. Diz muita coisa em poucos vocábulos.
Ser dado à doença é muito diferente de estar, efetivamente, doente. Ser dado à doença é pegar numa pequena anomalia própria do corpo que envelhece e torná-la na fatal possibilidade de morrer.

Ser dado à doença não é ser hipocondríaco. O hipocondríaco inventa sintomas e sinais. Por sua vez, o dado à doença amplia os seus sintomas e sinais numa lente esquizofrénica. No entanto, ambos têm uma coisa em comum: conhecem toda a paleta de doenças possíveis e imaginárias e conhecem, igualmente, todos os métodos de diagnóstico médico, como qualquer um de nós conhece a tabuada do um.


A pessoa dada à doença tem, com a idade, estágios de especialização cada vez mais apurados e, por isso, cada vez mais graves. A pessoa dada à doença vê sempre o pior. Não há nada que lhes aconteça que não tenda a desembocar numa terrível e inapelável doença terminal. Sofrem horrores, fazem mais testes em vida que toda a população do Sri Lanka no mesmo período, e continuam a sofrer, pois, geralmente, o pessoal dado a doenças sobrevive longamente ao pessoal que não é dado a doenças. É a vida: o pessoal dado à doença estará sempre mais vigiado do que os fortalhaças.


A minha amiga é uma fortalhaça. Mesmo quando conseguíamos, numa fase pré-vacinas, ver o coronavírus a sair-lhe das narinas, com aquela espécie de brócolos plantados na superfície esférica, ela jurava que não tinha nada, que se constipava com facilidade, que era só isso. Quando testou positivo foi só ver a sua expressão, incrédula, duvidando da capacidade dos profissionais de laboratório na operação nela realizada. Há, nos antípodas, do pessoal dado à doença, o pessoal que não é nada dado a doenças. Eu, como ela, também estou nessa categoria.
Sempre que me diagnosticam uma qualquer maleita eu adopto, quase sempre, uma postura negacionista. Acho sempre que aquilo que eles (os médicos interesseiros) querem é operarem-me, colocarem-me na linha de produção médica, da qual nunca mais sairei. E isso chateia-me.
Os meus diálogos com os médicos especialistas, nos casos delicados porque passo, são sempre um pouco surrealistas. Eles carregando nas tintas da doença e eu aligeirando-as. O senhor não pode brincar com isto dizem-me. E eu calo-me, não parece bem desvalorizar, nem tenho uma cultura médica que me permita alguma desenvoltura retórica no diálogo.
No entanto, calhou-me na rifa um médico de família bestial que, sendo um excelente profissional, não é nada dado a dramas. Tive sorte. Um dia quando lhe pedi umas requisições para análises com uma frequência mais curta do que o costume ele reprovou-me a ousadia. Venha cá mais tarde, até lá ainda morremos ... os dois, acrescentou, rindo-se. Além de apaziguador o meu médico de família é, fundamentalmente, um democrata.


O pessoal dado a doenças não é dado ao diálogo, pois não consegue ter tempo ou disposição para ouvir os outros. Pelo contrário: o seu grau de desgraça dá-lhe apenas disposição para ser ouvido. Daí que a troca de monólogos caracteriza com precisão as conversas entre o pessoal dado à doença.
Continuo a fumar. E esse hábito estúpido leva-me por vezes a sair à rua e, enquanto o fumo entra e sai, os meus ouvidos ficam alerta para essa preciosa troca de monólogos. Mais de metade das conversas de rua que roubo têm a ver com doenças. Suponho mesmo que as conversas meteorológicas já há muito foram arredadas do top das conversas de rua.
O disparo da conversa é sempre então como está? pergunta a primeira. E nem há tempo para quem perguntou dizer mais qualquer coisa. A segunda atira logo Miquinhas a minha espondilose está a dar cabo de mim, nem imagina. E vai por ali adiante. Por vezes acabo o cigarro sem que a interlocutora inicial tenha tempo de desfiar o seu particular rol de doenças. Por curiosidade fico, por vezes, mais algum tempo à espera do monólogo da primeira. Se a doença da segunda não é assim, afinal, tão grave, a primeira atira com jactância as suas maleitas. Não dizendo, mas como quem diz, o que tu tens não é nada comparado comigo. Os monólogos dialogados do pessoal dado às doenças têm sempre uma escala e é nesse particular ringue que o pessoal dado à doença se confronta.
E, bem vistas as coisas, essa troca de monólogos não está mal pensada. Há sempre uma coisa pior do que a outra e, como no milagre dos ecossistemas, as doenças adaptam-se ... para, paradoxalmente, continuarem a sobreviver. Pelo menos nos monólogos do pessoal dado à doença.

Rui Vítor Costa


terça, 11 janeiro 2022 19:12 em Opinião

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