“Do trabalho”

Porque o Homem é senhor, e não servo, do trabalho
Francisco, Papa

 

Sábias palavras estas do Pastor católico!

Por demais se conjugadas em uníssono com o princípio evangélico de “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus, 23.39; Marcos, 12.31; Lucas, 10.27; e João, 13.34); e já antes abordado por Paulo (Rm 13.9; e Fp 2.4). É que delas e deles pode-se extrapolar com alguma verosimilhança o conceito, hoje tão perseguido, de igualdade. Duma igualdade realmente mais plena.
Como?
Ex ovo (porque a tão longe se há-de ir), tem de depreender-se que qualquer actividade humana, quando destinada a satisfazer utilidades materiais ou imateriais da espécie, consubstancia um aporte de “valor” sobre o que lhe é anterior, ou ao que aparentemente gera ex nihil.

Assim e crendo na essência gregária do sapiens, descendo às profundas do seu tempo, aos grupos recolectores, mesmo neles (sem porventura se dever ainda falar em divisão), actividades aconteciam que, não se destinando ao uso só do ou dos que as praticavam, por serem para o colectivo ou para alguns dele, faziam beneficiar delas esses últimos. Labor esse que, nessa escala reduzidíssima, integrava a satisfação de necessidades terceiras; isto é, acrescentava algo ao bem em si: dava-lhe um valor, fosse ele o de apenas o proporcionar. Depois, à escala do crescente e progressivo aumento cada vez mais complexo desses grupos, por clãs, tribos e por aí fora, às, enfim, sociedades actuais, a adição dos labores foi se empolando, e acumulando, quer em infindas especificidades de bens, quer na dos saberes que os iam produzindo; até à amplitude que hoje encontramos e que pode ser conjecturada em quantificação económica, grosso modo e muito por defeito, no produto mundial bruto.
Será, hoc die e nesse perspectivado contexto, possível conjecturar a bastidão incomensurável de actividades humanas que se desenrolam permanentemente no planeta. Sem sequer descurar as que se destinam tão só à assimilação de saberes adquiridos e necessários para as subsequentes suas execuções tecnológicas e, porventura, posteriores seus desenvolvimentos. Ou seja e nessa pretendida descomunal globalidade, para se estar à la page com a cultura de cada sociedade (nela e para a aqui sua acepção, se inclui a plenitude do conhecimento humano, da filosofia à ciência e à técnica, com passagem por todas as outras áreas em que ele se verifica e pratica). Tendo sempre presente as que, desde aqueles inícios acima invocados, foram permitindo esses saberes hodiernos e que subsistem neles, por sucessivamente acumuladas.
Chegados a este ponto, cabe, nesta curta escrevinhação, uma lembrança: um aclaramento para se bem entender a anterior inclusão no propósito dela.
Assim, num elementar e mais que reduzido resumo (abstract), dir-se-á que “bem económico” é qualquer produção material ou imaterial susceptível de satisfazer necessidades humanas. E como, no presente, a universalidade desses bens incorpora já as diversas actividades materiais e, ou, imateriais que os originaram, conferindo-lhes os seus sempre acrescidos valores (desde as mais elementares iniciais até às directamente envolvidas na sua feitura), compreender-se-á que neles se venham a congregar todas elas. Dito de outra maneira, o conjunto de actividades que, desde o primórdio dos tempos sociais, conduziu ao concreto bem actual, integra, assim, como resultado da sua soma, todo esse trabalho antecedente, para o qual todas elas concorreram e que, finalmente, o permitiram. É, pois, esse somatório que constitui o “valor trabalho” do bem económico. Distinto dele, o “valor de troca”; que, do tempo da permuta de bem por bem aos posteriores meios de pagamento que foram sendo introduzidos e já os há virtuais, se pode traduzir no linguajar corrente em o: “preço”. Preço que é definido não só por o valor trabalho, mas também e sobretudo, pela “oferta” e pela “procura”. Ou, melhor, pela divindade dionisíaca delas: o “mercado”. O que provoca distorções que, no entanto, têm a ver com todas aquelas quantidades de trabalho integradas no bem e que são as que realmente lhe conferem a “mais valia”. Entretanto e como se sabe, é praticável influir, ou até mesmo intervir, em qualquer daqueles dois parâmetros. A especulação está aí para o demonstrar; a par dos monopólios, oligopólios, carteis e quejandos outros figurinos institucionalizados ou não; e já para não falar na destruição pura e simples. Na assim evidência de que se é o valor de troca que fixa o preço, por sua vez é este quem definitivamente determina o valor trabalho efectivamente comportado e quantificável no bem; porque este valor, na sua relatividade, apresenta-se como a variante (repete-se, na máxima amplitude de todas as actividades nele contidas através dos tempos e as necessárias para o produzir naquela data) ajustada e ajustável ao momento.

Destarte e porque os saberes se integraram num resultado social com o seu acumular e se concluem na actividade que os concretiza, é esse todo que acaba por constituir e gerar a mais valia que o bem confere. E portanto, parece, por ser o justo, que essa mais valia deve ser repartida por todos e não apropriada apenas por alguns; como tem acontecido desde os primórdios da nossa civilização europeia, através dos sistemas em que ela se organizou, ou está ainda organizada.
Dada por terminada esta subjectiva digressão pretensamente económica e a consideração que se lhe seguiu, como enquadrá-la com o adiantado no segundo parágrafo acima.
Reconhecendo-se, como se conhece, que é a disparidade na apropriação dessas mais valias que está na origem da desigualdade que, hoje, é fonte de uma contestação generalizada. Relação que assim é explícita, porque essa disparidade põe em causa aquelas palavras e transcrição acima reproduzidas. Dito de outra maneira; ultrajam-nas e simultaneamente ofendem os valores humanos que se apregoam e tanto se professam defender. Valores que, nunca será demais referi-lo, estão exarados, não só nos Evangelhos, mas concisa e profusamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Assim, retomando as invocações iniciais, dir-se-á que há cerca de 2000 anos, como relatam os evangelistas Mateus, Marcos (10.23/24/25) e Lucas (18.24/25), Jesus, transcrevendo apenas o primeiro, teria dito: “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus.” (19.23) e “E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo por o fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus.” (19.24).

Fundevila,
12 de Janeiro de 2022


Imprimir Email