A Avenida do Jordão

É possível que algumas pessoas nunca tenham ido ao antigo Teatro Jordão, mas não deverão ser muitas. Quem seja de Guimarães e tenha mais do que quarenta anos já sentou

seguramente os seus glúteos numa das muitas cadeiras daquele espaço, inaugurado em finais de 1938.

A agonia daquele espaço fundamental na cultura vimaranense, que muitos vivenciaram nos anos 90, até ao seu fecho definitivo em 1994, já vinha de duas décadas em que a empresa apresentava sistemáticos prejuízos, induzidos pelo progressivo abandono do cinema em sala, tristemente aditivado pela popularidade do vídeo e pela surpreendente desadequação de uma magnífica sala concebida para mais de 1000 espetadores.
O cinema é, ainda hoje, reduzido a uma caricatura quando o vemos numa televisão, ou em salas exíguas com os espetadores ruminando pipocas e falando da mesma forma que o fariam na sala de sua casa. Tenho, felizmente, a experiência do passado, das grandes telas, da imersão que o cinema por vezes convoca e é ainda possível vivenciá-la novamente nas sessões do Cineclube. Uma felicidade própria de quem vive em Guimarães.

O fecho do Teatro Jordão, recordo-me, deu apaixonadas discussões, movimentos, petições. Não foi possível salvá-lo na altura. Hoje regressa, passados 28 anos do seu desaparecimento, avivando memórias e constituindo-se como um novo espaço cultural de Guimarães. Diferente, adaptado às condicionantes que lhe impuseram, mas regressa, juntamente com a Auto Garage Avenida, inaugurada no mesmo mês e no mesmo ano em que o Teatro Jordão abriu, por iniciativa de Domingos Alves Machado, o pai da Colecção de Fotografia da Muralha, numa recuperação que me pareceu pouco feliz e que lhe retirou a magnífica comunicabilidade que a garagem estabelecia entre a avenida e a Penha.

Para muitos daqueles que se sentaram nas cadeiras do Jordão, a avenida em que o Teatro nasceu foi sempre a Avenida do Jordão.
A artéria que abriu a 30 de dezembro de 1900, estabelecendo a necessária ligação entre a estação ferroviária e o centro da cidade, foi inicialmente designada por Avenida do Comércio, depois, em 1910, após a implantação da República, passou a chamar-se Cândido dos Reis, até que a 10 de dezembro de 1943 adotou o nome que ainda hoje tem: Afonso Henriques. Mas, como sabemos, aquela é a Avenida do Jordão, assim o ficou na voz do povo, indelével, para além das toponímicas decisões camarárias.
É esse o mote da exposição com que o Cineclube e a Muralha se associam à celebração em que se reganha aquele espaço cultural e que estará disponível para ser visitada, temporariamente, a partir do próximo sábado no 2º piso do mítico Teatro Jordão, a quem se saúda uma nova (e longa) vida.

Há cerca de cem anos atrás Guimarães vivia a angústia de não possuir uma sala de espetáculos digna, após o fecho e a consequente degradação do Teatro D. Afonso Henriques. Durante mais de uma década discutiu-se essa necessidade, enquanto se disfarçava, a custo, a inexistência de um espaço cultural que Guimarães merecia, envergonhando os vimaranenses nos alvores do século XX. Foi Bernardino Jordão (1868-1940) que sonhou e executou o projeto de um Teatro digno e moderno que a todos orgulhasse, como orgulhou. Um espaço por onde passaram centenas de milhares de espetadores, vibrando com os filmes do John Ford, com espetáculos musicais, óperas, teatro e tornando-nos, a todos, um bocadinho melhores.
Bernardino Jordão foi um homem notável. Um homem generoso, de profundas convicções e, acima de tudo, alguém que não conhecia a palavra impossível. A Avenida do Jordão foi moldada justamente por ele. Instalou-se com a família, nos inícios do século XX, no palacete setecentista de Vila Flor que recuperou e aformoseou. Nela estabeleceu uma fábrica de moagem e panificação, a sua empresa de eletricidade que, depois de comprada a empresários ingleses, trouxe para a avenida em 1909, sendo posteriormente renovada pelos seus sucessores em 1959, e cujo edifício se mantém e domicilia, hoje, a EDP e a “cereja” que faltava: o incontornável Teatro Jordão.
Bernardino Jordão era um republicano e um democrata que nunca caiu no goto do poder então estabelecido. Quando se abalança, a custas próprias, para o projeto de dotar Guimarães de um espaço cultural modelar escolhe o nome de Teatro Jordão. Nada mais justo e apropriado. No entanto, o antigo regime, proíbe o nome e, rapidamente, se batiza o novo espaço como Teatro Martins Sarmento. Teve que se fazer uma estrutura em madeira que tapasse as letras de granito - que ainda hoje lá estão - anunciando um outro nome, distinto sem dúvida, mas inapropriado para tão notável e individual realização. A sociedade vimaranense amotinou-se, independentemente da sua posição ideológica. Tratava-se de uma questão de justiça e não de política. Água mole em pedra dura tanto dá até que fura e em final de 1940, já Bernardino Jordão havia falecido há cerca de meio ano, o Teatro ganhou oficialmente o nome pelo qual os vimaranenses o reconheciam: Teatro Jordão. Na Avenida do Jordão, acrescentamos nós, desejando-lhe o futuro que a sua longa e vibrante história merece.

Rui Vítor Costa

terça, 08 fevereiro 2022 15:42 em Opinião

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