Valha-nos Santo Ambrósio!

Santo cujo dia litúrgico coincide com o da abertura da época do Teatro La Scala; neste ano a de 2019/2020 e que foi iniciada, pela primeira vez, com a Tosca de Puccini.
Assim, no dia 7 do mês que transcorre, antecipando uma espécie de grandiosa prenda de Natal, pode-se assistir, via arte tv, à transmissão integral dessa opera; com elucidações antes do início e nos intervalos. E aquelas quase três horas, cerca de duas de espectáculo, valeram a pena. Arrebatadoras! Nem

outra coisa era de esperar com uma Anna Netrebko no seu melhor estar dramático (no fim, mais de quinze minutos de ovação e palco assaz florido). Super Diva bem acolitada por Meli (Francesco) e Salsi (Luca), nas figuras de Scarpi e Cavaradossi e uma ainda referência a Bosi (Carlo), o secundário Spoletto. Os excelentes coro e orquestra da casa, sob a direcção de Riccardo Chailly estiveram bem à altura, valorizando a função. Que gozou da direcção de David Livermore e equipa, com uma encenação sensacional, de planos sobrepostos e não só. Nota máxima, portanto e a cereja no cimo do bolo para Alexander Pereira.

Que estas coisas de operas também têm os seus predicados de qualidade e, até, de algum requinte.
A propósito desses atributos, já há dias, num qualquer canal alemão, ou austríaco, foi possível visualizar um outro espectáculo de grande nível; uma coreografia de ballet para a Messa da Requiem de Verdi, levada à cena no Opernhaus de Zurich.
Mas calemos o que vai mundo e retornemos à Ópera.
Numa vulgata despretensiosa e resumidíssima, sempre se dirá que, neste recanto que é a bacia mediterrânea (e o fenómeno não lhe é próprio), a expressão do sentimento no dizer da palavra acompanhada de sons tonais melódicos provem das profundas da antiguidade clássica. E abstraindo de qualquer sequência histórica advinda desses idos, sempre se adiantará que esta forma de arte tem sido dada como surgida no Renascimento e na hoje Itália, no trânsito para o século XVII. E aí floresceu. Disseminando-se nos séculos seguintes por toda a cultura europeia e ocidental, onde e um pouco por todo o lado, nas cidades que se presavam, se levantaram teatros para as suas representações (lembrando particularmente Bayreuth e a sua Festspielhaus). Portugal não fugiu à moda e Lisboa ( com um primeiro teatro derrocado aquando do terramoto de 1755 e, posteriormente, com o Teatro de S. Carlos) e o Porto (com o Teatro S. João), foram dotadas com casas vocacionadas para o efeito. Num curto parêntese e pela sua grandiosidade, bem como para demonstrar o espírito ostentatório de altas burguesias locais, permita-se apontar o Teatro Amazonas, a ópera de Manaus. Dito ele e de volta ao que se escrevia, restringindo-nos ao Porto e a um passado não já tão recente, sempre se adiantará que as épocas de ópera na Invicta, das companhias que se deslocavam para as assegurar (de recordar a figura de Luísa Todi, setubalense que granjeou fama internacional), elas foram objecto de diversos e apaixonados escritos, de rixas mesmo e constam da literatura, nomeadamente na de Camilo Castelo Branco. E aqui, como lá fora, a ópera foi sempre um espectáculo para minorias, para as elites, até porque, a par da arte patenteada, a presença, o convívio e a exibição social eram um forte contributo para se acorrer a edifícios que também eram pensado para cumprirem essa missão. Os foyers (na sempre memória do da Ópera Garnier), halls e amplos, e por vezes esplendorosos, espaços, atestam-no.
Mas o propósito destas linhas não era este ramal de a Ópera em si.
A intenção era e é outra...
Era de, pegando num caso concreto, divagar sobre o nível de qualidade artística que por aí corre sobre o apanágio duma espécie de absoluto santificado de criatividade e liberdade.
Antes de avançarmos mais convém esclarecer que, assim o temos, o conceito dessa qualidade não é um abstracto intemporal, mas, adversamente e como al, uma noção conjugada à realidade de cada específico presente social (e mesmo aí adstrita a definidos estratos dele); isto é, reveste-se sempre de relatividade. E que as sociedades são o que são, o no que o oceano incomensurável dos seus componentes, do Povo, se revê e não em vanguardas, por mais induções e extrapolações que se pretendam das suas doutrinas ou actuações. Nesse sentido o pôr o carro à frente dos bois nunca deu resultado, pois e como se gritou: o povo é quem mais ordena.
Nesta conjunção e igualmente neste momento do estar das sociedades ocidentais, vivências que paulatinamente se foram instalando timidamente a partir do fim do século XVIII, ou com mais visualidade no XIX e seguinte, a par de uma destruição de valores de uma sequencialidade consequente no processo histórico daquelas, tenderam a implantar a concepção da ars gratia artis (arte pela arte) que, actualmente, preside ao universo do campo artístico. Noções como a função da arte e de regras para o seu exercício (cânones), ou mesmo de ética, primeiro subalternizaram-se e depois foram sendo ignoradas, apagadas na só redução à categoria estética. Olvidando-se, inclusivamente, que a recepção e aceitação pelo povo depende da sua capacidade de um entendimento consciente do que lhe é proposto (duma valoração que, forçosamente, tem de ser aferida a qualquer referência) e não de iluminadas modas, por mais marketing que as promova e leve a um consumo embasbacado, para não dizermos imbecil. Assim, desembaraçadas de finalidade social e de cânones, sem quaisquer resquícios de uma qualquer réstia de ética, as artes foram-se alargando a tudo quanto era com essa designação nomeado (no que muito contribuiu a invasão dos princípios da Arts & Crafts, que desaguou, e bem, naquilo que hoje se engloba no design) e, simultaneamente, num crescendo de pretensos dogmas de criatividade e, pior ainda, de total liberdade. A tal ponto que, se se pegar num fétido poio e, conceitualizando, se o intitular como a demonstração artística do lixo da sociedade, como tal ele é tido e comido.
É este o ponto a que chegamos. A que assistimos. E nele a Arte deixou de ser uma actividade distinta, circunscrita a determinadas produções, manufacturas, que, segundo processos de elaboração testados ao longo de gerações e em constante mutação sequenciada, a par de cumprirem uma utilidade social que lhes estava intencionada, provocavam no receptor que as reconhecia uma sensação prazenteira de harmoniosa agradabilidade, por de outorgada beleza. Que, pressupondo aturado trabalho de aprendizagem e descoberta, atingiam uma qualidade de execução superior e, ao mesmo tempo, conseguiam passar a expressão do sentir da sua mensagem.
Padrão de excelência a que a cultura burguesa também se alcandorou. E agora?
Agora, vão sobrevivendo algumas Tosca’s.

Com votos de uma boa Festa de Família que reforce a identidade e os laços de pertença; e um novo ano de paz, saúde e maior bem estar.

Fundevila, 18 de Dezembro de 2019


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