"O povo é quem mais ordena"

Será mesmo?
No sempre imperioso regresso às origens, começar-se-á por lembrar que o homo sapiens, com um percurso de cerca de 300.000 anos,

é uma espécie animal que pressupõe, para a sua subsistência, agregação de vários seus membros. Isto porque, como racionalmente parece poder depreender-se, um único individuo teria poucas hipóteses de, isolado, sobreviver ao então mundo que o circundava e, sobremaneira, procriar (basta atentar na fragilidade da fêmea durante a concepção e na da protecção à cria nos primeiros anos desta). E mesmo para apenas um par as perspectivas não seriam muito mais animadoras.


Aliás, esta necessidade de adjunção é comum a muitas espécies de mamíferos, primatas e verificou-se em outras raças de homo.
Depois, nesses ajuntamentos, as capacitações dos seus constituintes não seriam completamente iguais, por o que sempre iriam surgindo diferenças que, naturalmente, se teriam ampliando com o andar dos tempos; quer pela densificação progressiva dos grupos e sua sucessiva aglutinação (clãs, tribos, povos), quer como, neles, pela aquisição, e acumulação, de conhecimentos e sequente crescente obtenção de utensílios, A complexidade, como em qualquer outro processo material, iniciava a sua rota para a necessidade de organização social; de enquadramento do individuo no colectivo em que se inseria e que, com o desenvolvimento sequencial, foi ganhando uma prevalecente identidade espacial em detrimento da só étnica. E essa organização foi-se exponencialmente intrincando no caminhar de diversas sociedades; sobremaneira nestes derradeiros séculos e concomitantemente com a explosão demográfica. Mormente após a industrialização e nas sociedades que a prosseguiram; e que se estruturaram em estados-nação (ou, até, em formas supranacionais).

Ao mesmo tempo e na linha de raciocínio acima apontada, aquelas diferenças de capacitação, na evolução, levam a crer diversidades de opinião (porventura, quando reduzida a aspectos de rudimentar vivência, incipientes ou mesmo indiferentes, mas que, com o andar das progressões e pela divisão do trabalho, foram-se afirmando e, a partir de momentos determinantes, enveredaram por divergências significativas e, inclusivamente, antagonismos). E que, com o constante fluir do processo social, conduziram a uma cada vez maior necessidade de coordenação; de direcção. Isto é, a uma arrumação de funções, posições e à sua correspondente hierarquização.
Restringindo-nos à Europa (melhor dizendo, à bacia mediterrânea) e bem antes da antiguidade clássica (quiçá há mais de 7.000 anos e já com uma estrutura estabilizada em Uruk), diversos modelos de organização social ocorreram e foram sendo implantados, numa sucessão que nos trouxe até ao tal estado-nação que se quer democrático; ou mesmo a esta espécie de falseada supernação que é a União.
Saindo daqui para uma visão planetária e com a população mundial a rondar os 8 biliões, compreender-se-á dificuldade de implementação duma democracia, ainda que incompleta e da inexequibilidade da directa. Ou sequer daquela mitológica que se pretende, em determinados períodos, ter ocorrido em Atenas e em outras polis helénicas. E sem abrir excepção para o presente, quer-se crer que e malgrado os avanços tecnológico, futurando, também não se nos auguram opções com soluções em rede, porque sujeitas ao igual óbice das gigantescas proliferações de vontades divergentes. Ainda que esse mundo virtual possa facilitar o exercício democrático (nomeadamente ao viabilizar formas de consulta, e auscultação, devidamente regulamentadas e que, em temas menos fracturantes, adjuvem os indesejados referendos).

Assim e como já se tem referido, a necessidade da representatividade (delegação) é, nos dias que atravessamos, uma evidência. Evidência que, no entanto, depende da proximidade dos decisores aos delegantes; de muitos patamares participativos (quer político-administrativos, quer cívicos), com atribuições e competências que lhes devem, e podem, caber, pelo contacto imediato que têm com as situações e para a querida eficácia das soluções. Sem que, no entanto, deixe de haver uma coordenação, não impositiva, mas conciliadora com os ideários gerais e os particulares que se lhes superiorizem. Um suma, uma funcional pirâmide democrática.
Ou não será realmente a democracia (etimologicamente, demos = povo, kratos = poder) aquele poder do povo que a Constituição tão afanosamente consigna nos seus primeiros artigos?
Só que “aí é que a porca torce o rabo”!

É que, como sói dizer-se “nem tudo que reluz é ouro”. E nas ditas democracias que por aí estacionam, com menos ou mais pitada participativa estruturada, o que subsiste é olvido sistemático da concreta vontade do cidadão da quase totalidade das decisões sobre a gestão da “res publica”. É certo que alguns países, com alguns escalões da pirâmide democrática estatuídos e a operarem, tendem para uma maior coincidência entre o que se decide e o querer dos que são abrangidos por a resolução. Mas, na maior parte dos casos, essa correspondência é um mito que morre no acto da eleição. Ademais e contra o que acontece na delegação da vontade individual (em que poderes genéricos só são admitidos para actos de administração ordinária, já que os especiais têm que ser expressamente referidos), na delegação eleitoral os genéricos (programáticos, quando existam) dão cobertura a tudo quanto surja; correspondendo, assim, a um mandato em branco, susceptível de abranger o que quer que seja e se enquadre nas respectivas atribuições e competências do representante. Acrescem ainda e por vezes o secretismo, as dificuldades de acesso aos processos e a má qualidade de informação antecipada ou posterior.

Consequências? Desde logo e na falta de uma cultura cívica trabalhada para a participação persistente, o desinteresse que se traduz na abstenção, votos brancos e o desencanto promotor de populismos chauvinistas. Depois e ainda mais grave, a detenção do poder em elites políticas e civis (porventura nele predominantes sobre as anteriores), que acabam por ser as definidoras da gestão da “res publica”. Os DDTs; os que, na verdade e com os seus apaniguados, detêm realmente o poder e que são quem o exerce. Concentração que facilita e é permeável à corrupção, nepotismos, clientelismos e a tudo o mais que se vai vendo.
O que trás à memória o Canto XLV (The Siena Cantos, Erza Pound), em que o poeta, fustigando, finalizou com o clamor de:

CONTRA NATURAM
They have brought whores for Eleusis
Corpses are set to banquet
At behest of usura.

Fundevila,
9 de Fevereiro de 2022

Óscar Jordão Pires


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