Da ruptura?

Será? Ou apenas uma sequencialidade consequente?


Na lógica dialéctica hegeliana, dicotómica, o acima título tem toda a razão de ser. No da segunda interrogação não.

Mas ruptura de quê?
Da cultura europeia, como traço identitário e estrutural, civilizacional, do espaço continental que utiliza o alfabeto latino; quiçá e alargando-o ao que, aí, herdou a nossa clássica (greco-romana e judaico-cristã), na medida em que, ainda que usando o cirílico e tendo algumas influências eslavas, no âmago do seu substrato, coincide em algo do que somos.
Definido o espaço e os que o podem integrar, subsiste o ingrato objecto conceptual do que ela seja. Sem se pretender uma sua definição, sempre se dirá que o seu amplo conteúdo de conjunto se desdobra em múltiplas singularidades, que vão, quer no seu genérico global, quer no particular, abarcando espaços vários sucessivamente fraccionáveis e, por outro lado, dentro destes, vão sendo adstritas a estratos sociais restritivos e, inclusivamente, a diversas áreas de actividades humanas. Assim sendo e para fácil apreensão do período anterior, pode-se falar da já apontada cultura europeia, como se pode falar da cultura portuguesa, da cultura minhota e até, de certa maneira, da cultura vimaranense ou da estudantil desta cidade; como se pode falar, ainda e entre muitíssimas outras indigitáveis, da cultura burguesa, popular, familiar, democrática, política, religiosa, musical, artística, futebolística, gastronómica e por aí fora, num sem número de especificações que vulgarmente são emitidas com esse sentido. E recentemente, nalguns casos, em conotação estreita com o que pressupõe a literacia.


Mas quando se fala de cultura queremo-nos referir a quê?
Sem entrar em especulações, parece que se pode adiantar que ela corresponde, no seu global e em cada uma das suas pormenorizações, à praxis contemporânea do conjunto a que se a pretende atribuir (para o seu todo e nele como que um denominador comum). Assim é quando nos referimos à europeia ou a quaisquer das cima apontadas, ou a outras que se queiram invocar. E sempre que essa praxis corresponde a um longo processo avindo das profundas dos tempos, que começou e decorreu dos instintos básicos de reprodução e sobrevivência (com a salvaguarda das memórias que mais os potenciavam e se foi desenvolvendo em crescente amplitude através das diversas idades), numa progressão sistemática que nos trouxe ao presente. Foram, portanto, as peculiares capacidades do sapiens na sua longuíssima evolução que foram gerando essas praxis, esses saberes acumulados e interiorizados, que se querem consubstanciados na cultura ou em quaisquer dos seus ramos a que se aluda.
Dito isto, importa lembrar a natureza gregária dos humanos e que as referidas praxis se originam, e existem, em comunidades, das mais simples às sucessivamente mais complexas, através de transmissão geracional, mormente quando esta passou a ser registada (materializada) e, para nós, a partir da impressão através de tipos móveis (meados do século XV), o que acelerou potencialmente a magnitude da aquisição dos saberes acumulados, ou os que iam sendo implementados, numa progressão desenfreada que nos colocou neste momento digital. Sempre sem esquecer a tradição oral, fundamental no seio da célula base da sociedade: a família.

Assim sendo e na época moderna, o itinerário da aquisição da nossa cultura iniciava-se no leite materno, isto é, na família, depois prosseguia na abertura à sociedade e ensinos que esta presta em diferentes ordens, e níveis, de qualificações; a que, sempre, tem que se adicionar o da empiria da vida, quer no seu cariz colectivo, quer no meramente individual.
Chegados a este ponto, começamos a aproximar-nos da dupla dubitativa sobre o título. Porquê? Porque parece que, na primeira, a dialéctica, o apontado itinerário está a apresentar fissuras. E que, no seu todo, crê-se anunciarem um outro devir distinto do actual (alteração qualitativa). Para a segunda, essas aparentes fissuras são apenas meros efeitos de causas que, contínua e contiguamentemente, prosseguirão a dinâmica evolutiva como imediatas e instantâneas causas de efeitos seguintes.
Deixemos, porém, essa segunda para outras núpcias e fixemo-nos na primeira.

Do que se pode observar e opinar, resultado de muitos motivos que confluíram no modus vivendi urbano, pode verificar-se e afirmar-se que a saúde da família, como agregado primário, periclita. Desde logo pela composição mais corrente do agregado familiar, nele, se circunscrever maioritariamente ao casal e descendência; ademais compelido a viver em espaços reduzidos e vazios durante grande parte do dia. Depois, o trabalho dos adultos, com deslocações de ida e vinda eventualmente morosas, e desgastantes, para além do cansaço extenuante do fim do dia, dificultam, como regra, uma convivência sadia, acentuada pela diminuição, ou mesmo falta, de refeições comuns relaxadas e permissivas de tradição oral. Depois, ainda, a criança, ou crianças, aos poucos meses, rumam ao infantário (creches e jardins de infância) ou soluções alternativas, raramente familiares, seguindo-se a escola, que, se prosseguida até à última graduação, finaliza já em idade adulta. Dificultando, assim, a primária e essencial convivência familiar, geradora de coesão, de fraternidade, da hierarquia, do respeito e sentido de pertença. Falhas cuja ausência se reflecte na seguinte etapa, na escola que, alargada à quase totalidade da população juvenil nos graus não superiores, crê-se, tem estado a desleixar as humanidades em prol das tecnologias, muito embora estas e por si, não acrescentem e de certa maneira depreciem, os valores humanos que são o fulcro de todo e qualquer progresso social ... e da nossa cultura, uma vez que fazem parte dela e simultaneamente determinam-na.

Valores humanos predominantemente europeus que, após a 2ª Grande Guerra, foram plasmados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, mais ou menos assumidos nos anos posteriores e que, gradualmente, têm vindo a ser ostracizados, quando não incumpridos e frontalmente violados. E que eram, e deviam continuar a ser, a expressão máxima do nosso milenar processo histórico, da nossa cultura. É que, na verdade, foi a nossa cultura que os forjou.
Só que, além do já acima indiciado, a superestrutura que nos abafa, dominante, com o seu único leitmotiv de lucro, engendrou uma dinâmica social que provocou, também, uma corrida na ciência e tecnologia, que passaram a ser grandes propulsoras dessa dinâmica, avessa, entretanto, às humanidades e a quaisquer actividades que não se integrem naquela intenção. Fomentando uma sociedade de entretenimento (em que se integra o lazer mercantil), nos seus múltiplos aspectos e manipulações, que vem desleixando a continuada tradição do passado, quebrando ligações e inovando como se aquele não tivesse acontecido, nomeadamente na área da cultura em sentido restrito (a artística e a dos valores colectivos). Se lhe somarmos a exacerbação do individualismo numa espécie que é, e só acontece, grupal, o efeito deste caldo é a desincorporação do anterior, rompendo com uma continuidade previsível e colocando-nos perante o imprevisto. Tanto mais que a ciência e a tecnologia, explosivas em curtíssimos prazos, pressagiam assombrosos pulos na cultura digital (p. ex.: IA generativa), na robótica, genética e em diversos outros campos.

Qual, pois, o resultado da alteração que parece perfilar-se?
O que se seguirá?

Fundevila, 23 de Agosto de 2023


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