São rosas senhor, são rosas

Tenho a memória muito forte da lenda da Rainha Santa Isabel dos meus livros da escola primária. Na altura fiquei com a impressão

que D. Dinis era um rei forreta e mesquinho e não, como percebi mais tarde, um reformista, um homem de letras, um rei visionário e importante na afirmação de Portugal como nação.

Foi, para mim, fascinante que D. Isabel lhe tivesse mentido quando levava mantimentos aos mais desfavorecidos no seu manto. El-rei, pouco generoso, perguntou-lhe: o que leva no regaço senhora minha? E ela atrapalhada disse-lhe, mentindo, serem rosas. Ele desconfiado foi verificar e o milagre deu-se: o pão transformou-se mesmo em rosas!

Mas o (estranho e pouco verosímil) milagre das rosas repete-se, no mesmo espaço, 700 anos depois. Primeiro com Sócrates de forma gloriosa, agora com Costa numa versão (ainda assim) mais contida. Perante as evidências, repetem-nos que são rosas senhores, apenas rosas e que a nossa mente doentia é que vê coisas que não existem. E a jactância com que o dizem leva-nos, por vezes, a duvidar das evidências, tal e qual D. Dinis duvidou.
Costa não tem a ver com Sócrates. É mais esperto, é mais preparado, é melhor, e não terá a ver com a praga de primeiro-ministro que nos “governou” entre 2005 e 2013. Quero acreditar na inocência de Costa, apesar da patética declaração de sábado passado, uma comunicação escusada e perturbadora, que envergonharia até Pilatos se o fizesse. O problema de Costa, apesar de ter abandonado Sócrates à sua “verdade”, é que se deixou voluntaria e estrepitosamente atar a toda a tralha socrática que sobreviveu a um dos períodos mais negros e vergonhosos da democracia portuguesa. Gente moderna, sem dúvida, mas impreparada, e, sobretudo, gente para quem a seriedade e a vergonha são apenas difusas abstrações. Quando uma dessas qualidades falta é grave, quando faltam as duas: é explosivo! E, neste caso está lá a tralha toda: Galamba, Vítor Escária, Tiago Silveira, distintos servidores de El-rei Sócrates.
E o modo de agir é sempre o mesmo: muita jactância, muito convencimento, paleio a rodos, e uma convicção olímpica na sua narrativa. Nada os abala: veja-se a figura de Galamba no parlamento na última sexta-feira, onde esteve, impante, em representação do Governo.

A queda do Governo é uma péssima notícia para quem acredita na democracia, no cumprimento dos mandatos. É mau para a economia, para as famílias, para a confiança com que os outros para nós olham. Não devia ter acontecido e não faltaram avisos, nomeadamente as considerações claras do Presidente da República sobre Galamba. No entanto Costa não resistiu a mostrar quem manda, absolutamente surdo e cego aos sinais claros que dali vinham. E foi pena, pois um pouco de humildade e consciência não o diminuiriam, muito pelo contrário.
Espero naturalmente que a Justiça faça o que tem, constitucionalmente, obrigação de fazer e que esteja segura, ciente dos seus limites e das suas responsabilidades perante todos nós. Espero que tudo se esclareça e que nada prescreva ao ritmo de manobras. E que não seja preciso que se condene alguém por corrupção apenas quando houver uma transferência Mbway do corruptor para o corrompido, com a designação de “pagamento de favor”. Agora é imperioso que a Justiça saiba o que está a fazer, que não falhe, que não invente, nem se deixe amedrontar. O nosso futuro, enquanto nação democrática, depende muito disso.

A mentira tornou-se assim, há 700 anos atrás, neste retângulo ao qual D. Dinis definiu as fronteiras (em 1297), um ato piedoso, um milagre. Esta tendência nacional para branquear a mentira é uma treta. Nada defende melhor a democracia do que a transparência e a verdade. É exatamente isso que o PS deverá fazer, rapidamente, sem voltar a cometer os erros que cometeu ao não se querer desinfetar-se da tralha política que reabilitou. Os outros partidos também deverão olhar para si mesmos. Em particular o PSD, para que a democracia se afirme e consolide pelas ideias, pela nossa participação cívica, e não pela discussão sistemática de milagres de ocasião.
Talvez se D. Isabel tivesse dito: é pão senhor, é pão para cuidar dos desfavorecidos aos quais falta o seu cuidado, nada disto acontecesse. Perder-se-ia uma santa, é certo, mas ganhar-se-ia uma mulher corajosa e convicta. Como aquelas das quais gostamos.

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